Icterícia

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

INTRODUÇÃO

   Icterícia (literalmente “amarelo”, derivado do latim icterus, que, por sua vez, tem origem no radical grego ikteros), ou “amarelão”, é o nome dado para o amarelamento da pele, olhos e mucosas pelo acúmulo de bilirrubina. A bilirrubina é um pigmento amarelado derivado da hemoglobina, a proteína que transporta oxigênio no nosso sangue, que é metabolizada no fígado, parte eliminada nas fezes e parte na urina. Assim, além da coloração amarelada na pele, a icterícia pode vir acompanhada de urina “cor de coca-cola” (colúria) e, se a causa impedir a chegada de bile no intestino, as fezes ficam esbranquiçadas, com cor de giz (acolia fecal).

   Há diversos passos da formação da bilirrubina até a sua eliminação nas fezes, envolvendo diversas enzimas e órgãos, fazendo com que o acúmulo de bilirrubina aconteça por problemas muito variados, alguns considerados apenas variações da normalidade, outras doenças sérias e com risco de vida.

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Bebê com icterícia (fonte)

   Em si, o acúmulo de bilirrubina causa poucas complicações em adultos, de problemas estéticos até coceira, mas não chega a causar lesões em órgãos, o problema é a causa da hiperbilirrubinemia. Já em bebês, a situação é mais complicada. Além da causa que pode necessitar de tratamento imediato, os mecanismos de proteção do cérebro ainda não estão prontos, e o excesso de bilirrubina no sangue chega ao cérebro, onde é altamente tóxico. Se não tratado em tempo, pode causar uma lesão irreversível no cérebro chamada kernicterus, que varia de alterações imperceptíveis até dano cerebral extenso e óbito.

   Como a icterícia é um sintomas que pode indicar doenças graves é fundamental procurar médico para iniciar investigação e tratamento assim que possível. Não é o tipo de problema que pode esperar semanas ou meses, pois pode levar a complicações sérias e irreversíveis.

METABOLISMO DA BILIRRUBINA E CAUSAS DA HIPERBILIRRUBINEMIA

Simplesmente não dá para tentar entender as causas de icterícia sem entender de onde vem a bilirrubina e o que acontece com ela no organismo. Os principais passos desse processo podem ser vistos na figura abaixo.

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Causas pré hepáticas

   O processo começa com a degradação do heme, que está mais presente nas hemoglobinas (que transportam gases nas hemácias, as células vermelhas do sangue), mas também nos músculos e em outros órgãos em menor quantidade. Daí chegamos à primeira causa da hiperbilirrubina: o excesso da degradação da hemoglobina.

   Isso pode acontecer quando há aumento na destruição das hemácias. Em recém nascidos, isso pode acontecer quando há incompatibilidade de Rh entre os pais, a chamada eritroblastose fetal. Também ocorre nas doenças genéticas da hemoglobina e hemácias, como talassemia, anemia falciforme, esferocitose e outras. Em adultos, há as chamadas doenças hemolíticas, como anemia hemolítica.

Causas hepáticas

   Depois que o heme é transformado em biliverdina, essa é transformada, ainda no sangue, na chamada bilirrubina não conjugada (indireta). A bilirrubina não conjugada é transportada pelo sangue ligada à albumina até o fígado, onde é metabolizada na bilirrubina conjugada (direta) e eliminada na bile.

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Estrutura tridimensional da bilirrubina. No organismo, existem as bilirrubina não conjugada (indireta) e a conjugada (direta). No fígado uma é transformada na outra quando a enzima glucuronil transferase junta um ácido glucurônico à bilirrubina, transformando a primeira, que se difunde facilmente pelo sangue, em uma forma que não ultrapassa fácil as barreiras e com isso consegue ser eliminada nas fezes. Os nomes “direta” e “indireta” tem a ver com os métodos utilizados no passado para serem diferenciados no laboratório e não fazem mais sentido prático, até dificultando a compreensão, mas foram consagrados pelo tempo – e é como aparecem ainda em resultados de exames.

   Quando a enzima glucuronil transferase, que transforma uma bilirrubina na outra, ainda não está sendo produzida na quantidade suficiente em recém nascidos, ocorre o acúmulo da bilirrubina não conjugada no sangue. Para evitar complicações como o kernicterus, a fototerapia transforma parte da bilirrubina não conjugada circulando ligada à albumina sob a pele em lumirrubina, que é eliminada na urina. A fototerapia continua até o fígado amadurecer o suficiente para que não seja mais necessária.

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Na fototerapia neonatal, são usadas lâmpadas que emitem luz em um comprimento de onda específico e que transformam a bilirrubina circulante sob a pele em um isômero que é mais facilmente eliminado na urina.

   Além da imaturidade transitória, mutações podem tornar a glucuronil transferase completa ou incompletamente ineficaz. No primeiro caso, onde não há atividade da enzima ou essa atividade é comprometida, ocorre a síndrome de Crigler Najjar, que também pode levar ao kernicterus. Uma forma muito mais branda de deficiência na enzima é a síndrome de Gilbert, onde a hiperbilirrubinemia e a consequente icterícia ocorrem em algumas situações como jejum, infecções e adolescência e apresentam apenas componente estético.

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Paciente com icterícia pela hepatite A

   Nos casos onde a função hepática está globalmente prejudicada, como na cirrose em estágio mais avançado ou nas inflamações mais intensas das hepatites virais ou autoimune, pode haver comprometimento na conjugação da bilirrubina e surge a icterícia. Já nas doenças colestáticas, onde há inflamação nos canais biliares, a bile já conjugada volta para o fígado e desse para o sangue, aumentando então a quantidade da bilirrubina conjugada (direta) no sangue.

Causas pós hepáticas

   Depois da conjugação da bilirrubina, essa é excretada pelas células do fígado para dutos biliares, que não se juntando (como raízes em uma árvore) até chegar ao duto hepático comum, onde vai se acumular na vesícula biliar como um dos componentes da bile. Após uma refeição, a bile se contrai, o esfíncter de Oddi relaxa e a bile é jogada no duodeno misturada com o suco pancreático.

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Anatomia e doenças das vias biliares (fonte)

   Qualquer doença que interrompa o fluxo de bile (tumores, cálculos, mal formações, inflamações) faz com que a bile se acumule no fígado. Essa bile, rica em bilirrubina conjugada (direta), acaba lesando os canais biliares, se infiltrando e chegando até o sangue.

Bilirrubina  não-conjugada

Bilirrubina conjugada

Aumento da produção de bilirrubinaHemóliseEritropatiasDoença do fígadoDoença hepatocelular (ex: hepatites)
Hiperesplenismo, autoimuneDoença colestática (ex: CBP)
Eritropoese ineficaz (ex: talassemias)Distúrbio do metabolismoS. de Dubin-Johnson
Destruição de hematomasSíndrome de Rotor
Redução da conjugaçãoHiperbilirrubinemia neonatalColestase benigna
JejumColestase da gravidez
Síndrome de GilbertDoenças extra-hepáticasDoença do trato biliar (ex: tumor, atresia de vias biliares)
Síndrome de Crigler-NajjarDoença pancreática (ex: carcinoma)

CONCLUSÕES

   A icterícia é um sintoma comum de doenças muito variadas, que afetam diferentes órgãos, algumas simples e sem necessidade de tratamento e outras graves que precisam de diagnóstico e tratamento urgentes. Portanto, é um sintoma importante que precisa de avaliação médica em todos os casos.

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O uso de aplicativos pode facilitar o diagnóstico de icterícia em bebês (fonte)

BIBLIOGRAFIA

Artigo criado em 12/10/18
Última atualização: 12/10/18