Síndrome Hepatorrenal (SHR)

Página em atualização. Favor retornar em alguns dias.

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

TEXTO EM ELABORAÇÃO, RETORNAR EM ALGUNS DIAS, OBRIGADO

A síndrome hepatorrenal (SHR) é uma complicação grave de doença hepática avançada, caracterizada por insuficiência renal funcional em contexto de hipertensão portal e falência hepática, na ausência de outras causas de dano renal. A sua relevância clínica cresce à medida que a cirrose é mais bem manejada e as complicações tardias tornam-se mais frequentes.
Segundo a EASL, a SHR é definida como “o aparecimento de insuficiência renal num paciente com doença hepática avançada e hipertensão portal, sem causa identificável de dano renal, sendo uma complicação funcional (em que o rim é estruturalmente normal)”. EASL-The Home of Hepatology.+2PMC+2
A AASLD publicou recentemente uma guidance de 2021 sobre ascite, peritonite bacteriana espontânea (PBE) e SHR, com atualização dos critérios diagnósticos. AASLD+1
Para o hepatologista, o reconhecimento precoce e o manejo da SHR são essenciais, pois impactam mortalidade, indicação de transplante hepático e estratificação de risco. Este texto propõe-se a revisar definição, epidemiologia, fisiopatologia, diagnóstico, tratamento e prognóstico da SHR, com ênfase nas recomendações das diretrizes internacionais.


Definição e classificação

As definições de SHR foram historicamente baseadas numa divisão em tipo 1 e tipo 2 — tipo 1 (aguda, rápida) e tipo 2 (insidiosa, associada a ascite refratária) — mas tanto a EASL como a AASLD avançaram para uma terminologia mais dinâmica centrada em lesão renal aguda (AKI) ou deficiência renal não aguda (NAKI) no contexto de cirrose. Wikipedia+2EASL-The Home of Hepatology.+2
Segundo a EASL (2010) o diagnóstico de SHR inclui:

  • doença hepática avançada com hipertensão portal,
  • insuficiência renal progressiva (por exemplo, aumento da creatinina sérica),
  • ausência de outras causas identificáveis de insuficiência renal (ex: desidratação persistente, uso recente de nefrotóxicos, doença renal primária, obstrução) e
  • ausência de resposta à expansão de volume com albumina e retirada de diuréticos, ou seja, que persista a disfunção renal apesar de correção de fatores precipitantes. EASL-The Home of Hepatology.+1
    A guidance da AASLD de 2021 reforça que o diagnóstico exige excluir outras causas de lesão renal em paciente com doença hepática descompensada e ascite, e que o tratamento precoce da AKI é crítico para evitar evolução para SHR. AASLD+1
    Caixa – linguagem simples:

A SHR é quando os rins “param de funcionar” num paciente com fígado muito doente, mas sem que haja danos diretos nos rins — é como se fosse um efeito colateral da falência hepática e das alterações de circulação.


Epidemiologia e relevância clínica

A incidência de SHR em pacientes com cirrose e ascite varia – relatos sugerem que até 18% dos hospitalizados por ascite desenvolvem SHR em 1 ano e até 39% em 5 anos. Wikipedia+1 A mortalidade é elevada: sem tratamento específico, o prognóstico de curto prazo é extremamente grave. A presença de SHR agrava o prognóstico da cirrose, mesmo comparando-se com outros pacientes semelhantes sem SHR. Lippincott Journals
Na prática clínica, a SHR representa uma urgência hepatológica-nefrológica. Reconhecer-se os fatores precipitantes (ex: PBE, hemorragia digestiva, uso exagerado de diuréticos, grandes paracenteses sem reposição de albumina) é fundamental para prevenir.
Caixa – linguagem simples:

Em gente com cirrose grave, se aparecer insuficiência renal sem outra causa aparente, o médico precisa pensar logo em SHR — é uma situação muito séria que exige ação rápida.


Fisiopatologia

O mecanismo da SHR é funcional e não estrutural: apesar da disfunção renal, os rins não apresentam lesão histológica primária. A cirrose com hipertensão portal desencadeia uma vasodilatação esplâncnica intensa, queda da volemia “efetiva” (isto é, da perfusão renal), ativação de sistemas vasoconstritores (renina-angiotensina-aldosterona, sistema simpático) e reflexo de vasoconstrição renal intensa. Isso reduz o fluxo sanguíneo renal, ou seja, os rins se tornam “hipoperfundidos”. PMC+1
Além disso, fatores como liberação de óxido nítrico, citocinas inflamatórias, endotoxinas (em especial se houver infecção ou PBE) contribuem para disfunção vascular e hemodinâmica. A depleção relativa da volemia efetiva, associada à ativação de vasoconstritores, gera o cenário de injúria renal funcional.
Em resumo, não há dano estrutural renal previamente: o rim “está bom”, mas não recebe perfusão adequada. Esse conceito é importante para diferenciar SHR de necrose tubular aguda, glomerulopatias ou lesão renal induzida por tóxicos.
Caixa – linguagem simples:

Imagine que o rim é um carro com combustível (sangue) normal, mas o “tubo de abastecimento” está tão apertado que não chega combustível suficiente — o rim ainda está intacto, mas sem “combustível” para funcionar bem.


Diagnóstico

O diagnóstico da SHR exige:

  1. Presença de doença hepática avançada e ascite (ou outra manifestação de hipertensão portal)
  2. Lesão renal, tipicamente – aumento da creatinina ou redução da taxa de filtração glomerular (TFG)
  3. Exclusão de outras causas de insuficiência renal: uso de nefrotóxicos, hipovolemia não corrigida, obstrução do trato urinário, glomerulonefrite, necrose tubular aguda (NTA) clara
  4. Ausência de resposta (ou resposta incompleta) a reposição volêmica com albumina e retirada de diuréticos. EASL-The Home of Hepatology.+1
    A EASL recomenda um “challenge” de albumina, bem como a retirada de fatores precipitantes, antes de estabelecer o diagnóstico de SHR. PubMed
    A AASLD guidance também enfatiza a avaliação criteriosa de AKI, enquadrando o paciente em estágios de lesão renal e iniciando medidas antes da progressão para SHR. AASLD
    Vale destacar que os critérios clássicos com creatinina >2,5 mg/dL ou débito urinário <500 mL/24h (usados em classificações antigas tipo 1/2) foram modificados. A terminologia atual considera a AKI em cirrose (HRS-AKI) ou NAKI (lesão renal não aguda) como formas de SHR. ScienceDirect
    Caixa – linguagem simples:

O médico primeiro vê que o fígado está muito doente, depois que os rins começam a “falhar” (a creatinina sobe, a urina pode diminuir), e aí descarta outras causas de rim ruim — se tudo isso se encaixa, pensa-se em SHR.


Tratamento

O tratamento da SHR tem como pilares: correção dos fatores precipitantes, infusão de albumina, vasoconstritores para melhorar perfusão renal, e correção definitiva da doença hepática (idealmente transplante).
Correção de fatores precipitantes: Identificar e tratar infecções (em especial PBE), hemorragia digestiva, tamponamento da diurese excessiva, suspensão ou ajuste de nefrotóxicos e agentes vasodilatadores ou hipovolémicos. EASL-The Home of Hepatology.
Albumina: Utilizada tanto como medida de reposição volêmica “função protetora” quanto para suportar o tratamento de SHR. Estudos demonstraram que resposta à albumina prediz melhor prognóstico. PubMed+1
Vasoconstritores: No cenário da SHR-AKI, o vasoconstritor mais estudado e recomendado é o Terlipressina em combinação com albumina. A AASLD reafirma que terlipressina + albumina é tratamento de escolha e que, onde não disponível, pode-se recorrer a Norepinefrina em ambiente de UTI com linha central. PMC A EASL também segue esta recomendação. EASL-The Home of Hepatology.
Transplante hepático: A única “cura” verdadeira da SHR é a correção da doença hepática subjacente (ou seja, transplante hepático). A sobrevida após transplante em pacientes com SHR melhora, mas o tempo até o transplante e a gravidade da disfunção renal influenciam o resultado. Lippincott Journals
Diálise/terapia de substituição renal: Usada como medida de suporte em casos graves ou enquanto se resolve a causa hepática ou prioriza-se transplante. Não modifica o curso da SHR se o fígado subjacente não for tratado.
A diretriz da EASL de 2024 baseada em estudo prospectivo confirma que um algoritmo que inclui infusão de albumina (2 dias) + tratamento de fatores precipitantes + terlipressina para quem evolui para SHR-AKI teve taxa de resposta alta (80 %) e menor necessidade de diálise. PubMed
Caixa – linguagem simples:

O tratamento começa com “tirar” o que está agravando (infecção, diuréticos demais), dar albumina para “encher” o sistema, usar um remédio que aperta os vasos (terlipressina) para melhorar o rim, e se tudo der certo resolver o problema do fígado — senão, só o fígado novo (transplante) resolve.


Prognóstico e seguimento

Mesmo com tratamento, o prognóstico da SHR continua reservado. Pacientes com SHR têm mortalidade significativamente maior que aqueles sem, nas mesmas condições de cirrose. A presença de SHR implica frequentemente em necessidade de transplante hepático acelerado ou outras estratégias de manejo intensivo. Lippincott Journals+1
A resposta ao tratamento (normalização ou queda da creatinina) correlaciona-se com melhor sobrevida. Pacientes que não respondem ao vasoconstritor/albumina têm pior prognóstico e maior probabilidade de necessitar suporte renal ou diálise. PubMed
No seguimento, é necessário monitorar função renal, balanço hídrico, doses de diuréticos, sinais de infecção, e considerar a listagem para transplante hepático. A prevenção recai sobre a otimização do manejo da ascite, do uso de diuréticos, da profilaxia de PBE e da prevenção de hemorragias digestivas varicosas. PMC
Caixa – linguagem simples:

Se o rim “voltar ao normal” com tratamento, a pessoa tem chance melhor. Mas se não responder, o risco de morte ou de precisar de rim artificial ou transplantar o fígado é muito maior.


Dicas clínicas práticas

  1. Em paciente com cirrose, ascite e aumento progressivo da creatinina, pense precocemente em SHR.
  2. Avalie e corrija fatores precipitantes rapidamente: infecções, hemorragia, uso excessivo de diuréticos, grandes paracenteses sem reposição.
  3. Atue de imediato com albumina (por ex, 1 g/kg no primeiro dia, seguido de 20-40 g/dia ou conforme protocolo local) em hipóteses de SHR ou AKI em cirrose, conforme diretriz da EASL. PubMed
  4. Inicie vasoconstritor assim que o diagnóstico de SHR-AKI for estabelecido e não houver resposta em 48 h à correção de fatores precipitantes. Terlipressina + albumina é padrão-ouro.
  5. Avalie para listagem de transplante hepático o mais cedo possível; quanto mais tempo o rim “aguanta” bem antes de transplante, melhor o resultado pós-transplante.
  6. Monitorar de perto função renal, eletrólitos, balanço de volume, uso de diuréticos, complicações de cirrose.
  7. Em locais onde terlipressina não está disponível, alternativas (como norepinefrina) devem ser consideradas sob cuidados intensivos.
  8. Aprofunde a colaboração entre hepatologista/nefrólogo para decidir sobre suporte renal vs chance de recuperação com tratamento da SHR.
  9. Comunicar ao paciente/família com clareza sobre gravidade da SHR, risco, necessidade potencial de transplante e suporte intensivo.

Considerações futuras e lacunas

Apesar dos avanços, permanecem lacunas importantes: a diferenciação precisa entre SHR e outras formas de injúria renal em cirrose (por exemplo NTA), a definição de biomarcadores de perfusão renal (ex: uNGAL), a padronização de protocolos de albumina e vasoconstritores, e a inclusão de pacientes de diferentes etiologias de cirrose nos ensaios. Um recente estudo prospectivo validou algoritmo da EASL com ótimos resultados, mas ainda se depende em grande parte de exclusão diagnóstica e de experiência clínica. ScienceDirect
Além disso, a alocação de órgão hepático para pacientes com SHR constitui desafio (priorização, tempo de espera, reversibilidade renal pós-transplante). Estudos futuros devem abordar melhor as estratégias de prevenção da SHR e identificar os pacientes que mais irão beneficiar com transplante precoce. Lippincott Journals
Caixa – linguagem simples:

Ainda estamos aprendendo como “pegar” a SHR bem no início, como diferenciar dela outros “rins ruins” em quem tem cirrose, e como administrar da melhor forma para dar ao fígado ou ao rim (ou ambos) a melhor chance de recuperação.


Conclusão

A síndrome hepatorrenal representa uma das mais graves complicações da cirrose descompensada. A definição e classificação evoluíram para um modelo centrado em lesão renal aguda (HRS-AKI) ou não aguda (HRS-NAKI), como proposto pelas diretrizes da EASL e da AASLD. O reconhecimento precoce, a correção de fatores precipitantes, a infusão de albumina, o uso de vasoconstritores — principalmente terlipressina — e a consideração precoce do transplante hepático são marcos do manejo atual. Para o estudante de medicina ou médico generalista, é fundamental compreender tanto os mecanismos como os passos clínicos de diagnóstico e tratamento; para o especialista, a integração hepatologia-nefrologia e a participação nas decisões de transplante são centrais. Em última análise, a melhoria dos resultados em SHR depende da rapidez da intervenção, da seleção adequada do paciente e da disponibilidade de recursos de suporte e transplante.


  • AMERICAN ASSOCIATION FOR THE STUDY OF LIVER DISEASES. Diagnosis, evaluation, and management of ascites, spontaneous bacterial peritonitis and hepatorenal syndrome. Hepatology, v. 74, n. Suppl 1, p. S-…201, 2021. Disponível em: https://www.aasld.org
  • EUROPEAN ASSOCIATION FOR THE STUDY OF THE LIVER. EASL clinical practice guidelines on the management of ascites, spontaneous bacterial peritonitis, and hepatorenal syndrome in cirrhosis. Journal of Hepatology, v. 53, n. 3, p. 397-417, 2010.
  • FERNÁNDEZ, J. et al. Hepatorenal syndrome: update on diagnosis and therapy. Clinical Journal of the American Society of Nephrology, v. 13, n. 12, p. 1898-1911, 2018. (PMC)
  • ANGELI, P. et al. Prospective validation of the EASL management algorithm for acute kidney injury in patients with cirrhosis. Journal of Hepatology, 2024.
  • WONG, F.; et al. The current management of hepatorenal syndrome–acute kidney (HRS-AKI). Liver Transplantation, v. 27, n. 8, p. 1113-1121, 2021.