
INTRODUÇÃO
O fígado é um dos principais órgãos do corpo humano, mas apesar de sabermos há muito tempo que é um órgão vital, só começamos e compreender suas funções no último século. Por isso, e ainda pela sua impressionante capacidade de regeneração, sempre esteve envolvido em uma aura de mistério que cativou não só anatomistas e fisiologistas, mas também artistas, filósofos e outros pensadores. Assim, desde a Antiguidade até o Renascimento, foi associado tanto a funções vitais das mais variadas (incluindo sediar a alma) quanto a significados simbólicos, influenciando obras de arte, estudos anatômicos e representações visuais.
O FÍGADO NA ARTE DA ANTIGUIDADE
Na Mesopotâmia, o fígado era considerado sede da vida e da adivinhação. Práticas como a hepatoscopia ou hepatomancia (interpretação de sinais em fígados de animais sacrificados) eram estritamente controladas, exclusivas de adivinhos sancionados pelo Estado e chegaram a ser extremamente elaboradas. Um sacerdote chamado Bárû, do III milênio a.C chegou a estabelecer um conjunto de regras para interpretação do fígado, separando o órgão em sessões que correspondiam a deuses, estrelas e meses. Essas regras foram reunidas finalmente no I milênio a.C. em 10 capítulos contidos em cerca de 100 tabuletas.
Na antiga Itália, a tradição veio dos etruscos, mas era menos sobre a adivinhar o futuro e mais sobre interpretar os humores e vontades dos deuses. permitindo tomar decisões que mantivessem a harmonia entre esses e os humanos (pax deorum). Temos vários artefatos daquela época, mas o mais famoso é um modelo em argila de fígado de ovelha, chamado de “Fígado de Piacenza” (séc. II a.C.), que apresenta inscrições etruscas (van der Meer, 1987).

Na arte grega, o mito de Prometeu castigado com a devoração contínua do fígado por uma águia é uma metáfora que mostra a percepção precoce da capacidade regenerativa do órgão. Essa cena foi representada em vasos, esculturas e pinturas murais. A hepatoscopia também existia na antiga Grécia, com algumas semelhanças e diferenças contextuais entre esses e os assírio-babilônicos.

O FÍGADO NA IDADE MÉDIA
Durante a Idade Média, a iconografia médica ainda se baseava em tradições greco-árabes, especialmente de Avicena (c980-1037) como chamamos o polímata persa Abu Ali Huceine ibne Abedalá ibne Sina (ou Ibn Sina). Avicena partiu das observações de Galeno (200 a.C.) e descreveu adequadamente a anatomia do fígado, sua relação com outros órgãos e que não possui nervos internos, apenas na cápsula. Em compensação, acreditava que a principal função do fígado seria a de criar o sangue e a urina, além de produzir quatro “humores”: sangue limpo (enviado ao restante do corpo), água (para os rins), bile amarela ou humor bilioso (para a vesícula biliar) e bile negra ou humor atrabilioso (para o baço). Desde a Antiguidade e a Idade Média, acreditava-se que a bile negra era considerada a causa da melancolia, do mau humor e de um temperamento colérico e irritável.

LEONARDO DA VINCI E O FÍGADO NO RENASCIMENTO
O Renascimento marcou uma ruptura na forma de representar o corpo humano. Leonardo da Vinci (1452–1519) realizou dissecações e produziu alguns dos primeiros desenhos científicos precisos do fígado humano. Em seus cadernos, representou o fígado em conjunto com os vasos do sistema porta e as vias biliares, tentando compreender a circulação sanguínea dois séculos antes das descobertas de William Harvey em 1628.

Leonardo descreveu o fígado como uma estrutura de consistência mole, comparando-o a uma “esponja” pela maneira como recebia e distribuía o sangue (Clayton & Philo, 2012). Seu interesse em representar o órgão foi motivado pela busca de compreender a função digestiva e circulatória. Além disso, produziu esboços detalhados de fetos em útero, nos quais o fígado aparece em posição proeminente, refletindo a visão galênica de que o fígado era o primeiro órgão formado na vida embrionária.
OUTROS ARTISTAS E ANATOMISTAS RENASCENTISTAS
Após os estudos pioneiros de Leonardo da Vinci, o avanço da anatomia no século XVI consolidou-se com a publicação de atlas médicos que circularam amplamente na Europa. Esses livros, ilustrados com gravuras detalhadas, tinham função não apenas científica, mas também didática e artística, e foram fundamentais para a fixação de uma iconografia mais precisa do fígado e dos demais órgãos abdominais.
Andreas Vesalius (1514–1564), médico flamengo formado em Pádua, publicou em 1543 sua obra monumental De humani corporis fabrica libri septem. Considerada um marco fundador da anatomia moderna, a obra reuniu mais de 200 xilogravuras de grande precisão técnica, realizadas em oficinas gráficas de Veneza. O fígado aparece em várias pranchas, geralmente representado em contexto abdominal, em continuidade com o estômago, intestinos, vesícula biliar e vasos. Diferente das representações simbólicas ou esquemáticas anteriores, Vesalius apresentou o fígado como órgão tridimensional, com inserção vascular e relações anatômicas reais. Sua abordagem rompeu com dogmas de Galeno e inaugurou a era da anatomia empírica publicada em escala.

Juan Valverde de Amusco (1525–1588), anatomista espanhol, publicou em 1556 o Historia de la composición del cuerpo humano. Embora fortemente inspirado na Fabrica de Vesalius (muitas gravuras foram adaptadas ou copiadas), Valverde produziu um atlas mais acessível, escrito em espanhol e latino, que circulou em toda a Península Ibérica e no Novo Mundo. Suas imagens, incluindo representações do fígado, eram menos rigorosas do ponto de vista anatômico, mas altamente estilizadas e didáticas, o que ajudou a difundir o conhecimento entre médicos e cirurgiões fora dos grandes centros acadêmicos.
Giulio Casserio (1552–1616), anatomista italiano, deu continuidade à tradição de Vesalius e é lembrado por suas ilustrações refinadas na obra Tabulae anatomicae (publicada postumamente em 1627). Suas pranchas incluem representações minuciosas do fígado, com atenção especial à rede vascular e às vias biliares. O estilo artístico era mais delicado e naturalista, refletindo o gosto barroco nascente.

Johann Vesling (1598–1649), médico alemão radicado em Pádua, publicou em 1641 o Syntagma Anatomicum, atlas que se tornou um manual de referência para estudantes de medicina por mais de um século. O fígado aparece em cortes abdominais e esquemas simplificados, privilegiando a função pedagógica. Embora menos artístico do que os atlas renascentistas, a obra contribuiu para consolidar o ensino anatômico moderno.
A contribuição desses autores foi dupla: de um lado, transformaram o fígado em objeto de conhecimento científico rigoroso, baseado em dissecação e observação direta; de outro, criaram imagens de grande impacto visual, que circularam amplamente e ajudaram a fixar no imaginário europeu a forma e a função desse órgão vital. Dessa forma, a iconografia do fígado passou a ser reconhecida não apenas nos círculos médicos, mas também em ambientes artísticos e culturais mais amplos, refletindo o espírito de integração entre ciência e arte característico do Renascimento.
O FÍGADO NA ARTE MODERNA E CONTEMPORÂNEA
Com a consolidação da anatomia científica no século XIX, as imagens do fígado migraram sobretudo para atlas médicos e ilustrações didáticas, cada vez mais precisas, tornando-se menos frequentes em representações artísticas tradicionais. Contudo, no século XX e XXI, o órgão voltou a ser explorado por artistas em contextos simbólicos, críticos e conceituais.
O Surrealismo, especialmente através de Salvador Dalí, abriu espaço para uma representação mais visceral e simbólica dos órgãos internos. Embora Dalí não tenha representado o fígado de forma direta em uma obra específica, sua produção é permeada por formas orgânicas e vísceras expostas, evocando a vulnerabilidade do corpo e a inquietação diante da morte e da regeneração. O fígado, como órgão regenerativo por excelência, pode ser lido nas entrelinhas de sua iconografia biomórfica.

Já na arte contemporânea, o britânico Damien Hirst levou o corpo humano para o centro de suas instalações. Em obras como Some Comfort Gained from the Acceptance of the Inherent Lies in Everything (1996), ele apresenta órgãos em vitrines de aço e vidro com solução conservante. Embora muitas vezes seja difícil identificar cada víscera, o fígado aparece nessas séries como parte de um inventário anatômico que provoca reflexões sobre vida, morte, materialidade e efemeridade do corpo humano.
Outros artistas também dialogam com o tema. Gunther von Hagens, criador da técnica de plastinação, expôs fígados humanos e animais em sua série Body Worlds, misturando ciência, pedagogia e arte. No campo da bioarte, artistas como Orlan e Eduardo Kac trazem discussões sobre manipulação do corpo, transplantes e biotecnologia — dimensões em que o fígado tem protagonismo, seja pela regeneração natural, seja pelos transplantes.
Assim, o fígado, que foi durante séculos símbolo de adivinhação, centro da vida e objeto anatômico, hoje ressurge como metáfora artística para identidade, morte e tecnologia biomédica.
Leia também: Fígado? Hepato? De onde vem esses nomes?
BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA
- Clayton, M.; Philo, R. (2012). Leonardo da Vinci: Anatomist. The Royal Collection, Londres.
- Kemp, M. (2010). Leonardo da Vinci: The Marvellous Works of Nature and Man. Oxford University Press.
- Vesalius, A. (1543). De humani corporis fabrica libri septem. Basileia: Oporinus.
- Valverde de Amusco, J. (1556). Historia de la composición del cuerpo humano. Roma.
- van der Meer, L. B. (1987). The Bronze Liver of Piacenza. Amsterdam: J.C. Gieben.
- O’Malley, C. D. (1964). Andreas Vesalius of Brussels, 1514–1564. Berkeley: University of California Press.
- P. Mazengenya, R. Bhikha,
- Revisiting Avicenna’s (980–1037 AD) anatomy of the abdominal viscera from the Canon of Medicine, Morphologie, Volume 102, Issue 338, 2018, Pages 225-230, ISSN 1286-0115, https://doi.org/10.1016/j.morpho.2018.05.002. (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1286011518300249)
Artigo criado em: 28/08/2025
Última revisão: 28/08/2025

