Amiloidose e o fígado

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

INTRODUÇÃO

   A amiloidose é conjunto de doenças raras (afeta oito em cada 1 milhão de pessoas), progressivas e potencialmente fatais, que ocorrem quando há depósito e acúmulo em órgãos de pedaços de proteínas dobrados em uma configuração altamente estável e rígida (em folhas de pregueamento “beta”).

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Biópsia renal corada com vermelho Congo, mostrando o aspecto “fluorescente” da proteína amilóide.

   Hoje conhecemos mais de 30 proteínas que podem ser produzidas pelo organismo e depositadas dessa forma. Podem ser proteínas anormais (como na amiloidose familiar e na amiloidose sistêmica adquirida de imunoglobulinas de cadeia leve – AL), quando há uma proteína normal em excesso por longo tempo (na amiloidose sistêmica reativa – AA – e na amiloidose por beta-microglobulina associada a diálise) ou, por motivos desconhecidos, pela idade (amiloidose sistêmica senil e amiloidose do petídeo natriurético atrial).

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Modelo estrutural da proteína amilóide. Aqui estão representadas 4 folhas paralelas.
Sunde M, Serpell LC, Bartlam M, Fraser PE, Pepys MB, Blake CCF J Mol Biol 1997 Oct 31;273(3):729-739

   Como essas proteínas (que variam de acordo com a causa) são muito estáveis, vão se depositando em um ou mais órgãos, podendo comprometer o seu funcionamento e, em casos mais graves, morte. Os órgãos mais afetados são o coração, rins, trato gastrointestinal e sistema nervoso central, mas pode afetar também língua, músculos, pele, ligamentos, articulações, baço, pâncreas e, claro, o fígado. Apesar dos avanços no diagnóstico e tratamento nas últimas décadas, continua sendo diagnosticada geralmente apenas quando está avançada, com um terço dos portadores de AL (amiloidose de cadeia leve, a mais comum) falecendo poucos meses após o diagnóstico.

EPIDEMIOLOGIA

   A amiloidose ocorre com a mesma frequência em homens e mulheres, geralmente após os 40 anos de idade. Uma revisão dos dados do National Amyloidosis Centre (NAC) de 1987 de 2012, onde são encaminhados a maioria dos casos diagnosticados no Reino Unido, mostra que a amiloidose do tipo AA (reativa sistêmica, ou secundária) diminuiu consideravelmente ao longo do tempo, provavelmente refletindo a melhora no tratamento de artropatias crônicas com o uso de medicamentos biológicos. Em compensação, aumentaram os casos de amiloidose senil, em parte pelo envelhecimento da população, mas principalmente porque o surgimento da ressonância nuclear magnética cardíaca ajudou a fazer esse diagnóstico (de fato, dados de necrópsias mostraram que um quarto dos indivíduos de mais de 80 anos possuem essa amiloidose).

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Púrpura ao redor dos olhos decorrente da fragilidade dos capilares na amiloidose (fonte)

   Já a terceira amiloidose mais comum, a associada a diálise, é mais frequente no sul da Ásia, norte da África, no Oriente Médio e no México. A amiloidose hereditária é mais rara, com apenas um caso em cada 100.000 pessoas na Europa.

TIPOS DE AMILOIDOSE

   Há três tipos principais de amiloidose, a primária, a secundária e a genética.

   A amiloidose primária (AL) é a mais comum, onde a proteína amilóide é um fragmento da cadeia leve de imunoglobulinas (proteínas que fazem parte do sistema imunológico), que é produzida em excesso por células imunológicas. Geralmente está associada a uma doença da medula óssea, o mieloma múltiplo. O acúmulo de amilóide geralmente afeta o coração, rins, pulmões, pele, língua, nervos e intestino.

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   Na amiloidose secundária (AA), a proteína depositada é chamada de amilóide sérico A e é uma proteína produzida pelo fígado em resposta a processos inflamatórios. Por esse motivo, essa amiloidose é observada em pessoas portadoras de doenças inflamatórias sem tratamento adequado por mais de uma década, especialmente doenças inflamatórias intestinais (Crohn e retocolite ulcerativa), artrite reumatóide, osteomielite, tuberculose, hanseníase e outras doenças.

   A amiloidose hereditária é muito rara e ocorre quando uma mutação genética leva a produção de uma proteína amilóide (transtiretina, proteína beta-amilóide P, apolipoproteína A1, procalcitonina e beta-2-microglobulina). A identificação da proteína envolvida é importante para prever suas possíveis complicações, tratamento precoce e risco de transmissão para os filhos.

SINTOMAS

   Como os amiloides podem se depositar em órgãos diferentes, os sintomas e achados clínicos podem ser muito variados, como mostra a tabela abaixo.

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   A principal causa de mortalidade pela amiloidose é a insuficiência cardíaca, particularmente a insuficiência cardíaca direita (onde observa-se dilatação das veias jugulares no pescoço, inchaço nas pernas e no fígado), evoluindo com falência do órgão e queda na pressão arterial. Essa manifestação é rara na amiloidose secundária (reativa, AA), e mais comum na primária (de cadeia leve, AL), onde ocorre em 50% dos portadores. Além de ser mais comum na AL, o amilóide AL é tóxico às células cardíacas, fazendo com que esses pacientes tenham maior comprometimento do órgão que os das outras amiloidoses, mesmo com quantidade similar de depósito.

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A anasarca, edema generalizado decorrente da falta de albumina (pela síndrome nefrótica, na amiloidose) se caracteriza por inchaço tanto das pernas quanto do rosto. É diferente do edema causado por problemas vasculares ou insuficiência cardíaca, por exemplo, que costuma aparecer nas pernas.

   Os rins são o órgão mais afetado pelas amiloidoses AL, AA, AFib, ALect2 e AApoA1. Especialmente na AA, o depósito de amilóide provoca a chamada síndrome nefrótica, danificando o glomérulo e levando à passagem e perda de proteínas na urina. A principal proteína perdida na urina é a albumina. A albumina tem múltiplas funções, mas nesse caso específico o que mais importa é a chamada função coloido-osmótica. A albumina, como uma proteína grande, “segura” a água dentro dos vasos sanguíneos. Quando falta albumina no sangue, a água começa a vazar para os tecidos, fazendo com que as pernas inchem e comece a acumular água na barriga (ascite). Além da albumina, pode haver perda da proteína amiloide na urina, que pode ser detectada.

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Tomografia computadorizada mostrando hepatomegalia em paciente com amiloidose AL (fonte)

   O fígado costuma estar aumentado (hepatomegalia) pela deposição dos amiloides, mas isso raramente chega a prejudicar a sua função. Algumas vezes surge ascite, mas ela geralmente não é decorrente unicamente de hipertensão portal, mas também de insuficiência cardíaca e síndrome nefrótica.

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Biópsia hepática mostrando amilóide na coloração vermelho Congo (setas) – fonte

   Os nervos periféricos também podem ser afetados pelo acúmulo de amiloides, principalmente na AL. Em homens, o primeiro sintoma costuma ser a disfunção erétil (impotência), seguida de hipotensão postural (queda da pressão quando se levanta rapidamente), saciedade precoce e alteração no hábito intestinal, com diarreia, constipação ou alternando ambos. O comprometimento dos nervos sensitivos pode levar a redução na sensibilidade de extremidades ou dor.

   O acúmulo de amiloide em tecidos moles pede lavar ao aumento da língua (macroglossia) e síndrome do túnel do carpo, particularmente na AL, e o histórico de doença cardíaca atípica precedida de síndrome do túnel do carpo em idosos deve levantar a suspeita de amiloidose.

DIAGNÓSTICO

   Como trata-se de uma doença rara e que pode afetar múltiplos órgãos com achados clínicos variáveis, o diagnóstico pode ocorrer investigando a causa de algum comprometimento a órgão específico, mas o ideal é que seja feito pelo achado pelo conjunto de pequenos sinais e sintomas, antes que se chegue a esse ponto. E isso não é possível sem uma boa história clínica e exame físico, especialmente pelo médico generalista.

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   Após a suspeita clínica, pode ser realizada a pesquisa de amiloides de cadeia leve no sangue ou urina, que serve como exame de rastreamento. Depois disso, são realizadas biópsias de gordura subcutânea, mucosa retal ou labial e/ou medula óssea para confirmação diagnóstica. Em alguns casos, é necessária a coleta de biópsia do órgão afetado. Essas biópsias mostrarão o acúmulo da proteína amilóide e, se possível, identificar o tipo de amiloide, o que vai influenciar o tratamento.

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Proposta de sequência diagnóstica da amiloidose por Wechalekar e colaboradores.

   No fígado, além da hepatomegalia observável ao exame físico e de imagem, a biópsia revela birrefringência esverdeada no espaço de Disse após coloração com o vermelho Congo e atrofia hepatocelular (por redução do transporte de nutrientes e oxigênio), geralmente sem fibrose significativa. Como geralmente há alteração de coagulação (anormalidades vasculares, plaquetopenia, redução de fatores IX e X que se ligam às proteínas amiloides), não recomenda-se a realização de biópsia do fígado.

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Biópsia mostrando achados típicos de amiloidose AA. A foto do canto superior esquerdo mostra o amiloide mais avermelhado na coloração de Vermelho Congo na luz normal, e o aspecto brilhante na luz polarizada (abaixo). No canto superior direito, a imunohistoquímica confirma a amiloidose AA. No canto inferior direito, a nova técnica de coloração pTFAA mostra amiloidose AL na fluorescência.

   A imunohistoquímica pode demonstrar qual é o amiloide, especialmente na AA e na ATTR, mas dificilmente na AL. Outros métodos mais sofisticados incluem a pTFAA e a espectofotometria e massa do amiloide, capturado por microscópio de captura a laser.

   Além da biópsia, a pesquisa do amiloide no sangue e na urina, através de eletroforese com imunofixação (IFE) consegue diagnosticar a cadeia leve da AL em 95% dos casos. Na AA, é necessário realizar biópsia de medula óssea para confirmar ou descartar mieloma múltiplo.

   Em pacientes com gamopatia monoclonal de significado indeterminado (MGUS), amiloidose cardíaca e renal, frequentemente associadas à AL, a a realização da pesquisa do biomarcador da porção N-terminal do pró-hormônio do peptídeo natriurético do tipo B (NT-proBNP) pode servir como rastreamento e facilitar o diagnóstico precoce.

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Acometimento cardíaco pela amiloidose, mostrando espessamento da parede cardíaca e redução nas cavidades no esocardiograma (acima) e ressonância (abaixo) – fonte

   O próximo passo é investigar que outros órgãos estão acometidos pela doença. A cintilografia com SAP ajuda na localização de áreas afetadas, mas o grau de acumulo do amiloide por esse método tem pouca correlação com o grau de comprometimento dos órgãos, que devem então ser avaliados com os métodos mais adequados.

TRATAMENTO

   Os objetivos do tratamento, a partir do diagnóstico, são reduzir ou diminuir a produção do amilóide, eliminar depósitos, aliviar ou curar a doença de base e tratar as complicações decorrentes pelos depósitos nos órgãos acometidos.

   No caso das amiloidoses hereditárias ATTR, AApoAI e AFib, a fonte do amiloide é o fígado, e o transplante hepático é capaz de interromper a progressão da doença.

   Na amiloidose AL, o tratamento indicado é a quimioterapia com a células monoclonal que produz o amiloide de cadeia leve como alvo. Essas células geralmente correspondem a gamopatia monoclonal de significado indeterminado (MGUS), com 10 a 15% associada a mieloma múltiplo. Os avanços significativos no tratamento do mieloma, adaptados à AL, trouxeram a uma melhora significativa no prognóstico desses pacientes, especialmente quando o transplante autólogo de células tronco é possível. Não vou me deter nos esquemas quimioterápicos existentes pois estão sempre em mudança, com novos agentes e combinações, cada um para determinada situação, e o Hematologista ou Oncologista são habilitados para propor a melhor opção para cada caso.

   Na amiloidose AA, o tratamento se baseia em encontrar a doença inflamatória responsável e tratá-la. Isso pode ser feito com antibióticos na tuberculose ou agentes biológicos nas doenças reumatológicas.

CONCLUSÃO

   Apesar de relativamente rara, a amiloidose é mais comum do que se geralmente reconhece se levarmos em consideração os grupos de risco, especialmente os portadores de mieloma múltiplo, gamopatia monoclonal de significado indeterminado (GMUS), idosos e portadores de doenças infecciosas e inflamatórias crônicas. Nesses, e em pacientes com sintomas ou combinações de sintomas específicos, a investigação e o tratamento adequado pode evitar complicações e melhorar tempo e qualidade de vida dos pacientes.

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Artigo criado em: 03/04/05
Última revisão: 03/11/18