Introdução às Porfirias

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

Porfirias são doenças causadas por erros na produção da molécula heme. Esses erros levam a acúmulo de proteínas intermediárias e outros compostos, que desencadeiam sintomas que podem ser graves e debilitantes. Como são raras e complexas, muitas vezes os portadores passam por múltiplos médicos, às vezes por anos, até conseguir o diagnóstico.

Estudar porfiria é complicado. Cada uma tem seu mecanismo de doença, uma transmissão genética, perfil bioquímico, fatores desencadeantes, sintomas que se sobrepõe e modos de tratar. Para piorar, os mesmos metabólitos e enzimas podem ter nomes diferentes a cada publicação.

Para ser justo, é um dos conjuntos de doenças mais complicados da Medicina, desde a compreensão de como ela acontece, como fazer o diagnóstico e como tratar. O objetivo desse texto é simplificar ao máximo, evitando entrar na bioquímica e na genética quando possível e focar. Se o leitor quiser se aprofundar mais, sugiro ler o texto mais completo em PORFIRIAS.

HISTÓRIA

A porfiria já é conhecida há muito tempo. Aparentemente Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.) teve contato com portadores, mas não sabia muito do que se tratava. O nome “porfiria” (derivada do grego “púrpura”), foi dado por um estudante de medicina alemão, Schultz, que em 1874 observou a coloração púrpura na urina de alguns pacientes.

A urina de cor púrpura já chamava a atenção desde a Antiguidade.

A primeira descrição oficial de um caso de porfiria aguda como uma síndrome foi feita pelo Dr. B.J. Stokvis no ano de 1889. Em 1930, o químico alemão Hans Fischer recebeu o prêmio Nobel de Química pelos seus estudos sobre os pigmentos no sangue, bile e da clorofila, incluindo a síntese de bilirrubina e heme. Em 1937, o médico sueco Jan Gösta Waldenström publicou seus achados sobre a porfiria aguda intermitente de modo tão completo que a doença tornou-se conhecida até pouco tempo como “porfiria sueca” ou “porfiria de Waldenström”. Apenas na década de 60 os exames para a detecção de intermediários da síntese do heme foram desenvolvidos, permitindo o diagnóstico adequado.

Fotos antigas de atlas de dermatologia sobre porfiria cutânea tarda. Dá para entender como algumas lendas apareceram (de Sarkany RPE. Making sense of the porphyrias. Photodermatol Photoimmunol Photomed 2008;4:102-8).

Pela aversão ao Sol e deformidades que surgem quando a doença não é diagnosticada e tratada em casos graves, a porfiria provavelmente contribuiu para o surgimento de mitos como os vampiros e lobisomens. Possivelmente vitimou diversas figuras históricas conhecidas, como o Rei George III da Inglaterra, o pintor Vincent van Gogh e o escultor mineiro Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.

HEME

O heme é uma molécula utilizada na construção de proteínas de grande importância no organismo, especialmente a hemoglobina, que transporta oxigênio e gás carbônico para e dos pulmões, e proteínas do citocromo P450 no fígado, que entre outras funções protegem o organismo de toxinas e metaboliza medicamentos.

O heme é composto de um anel (chamado de “pirrólico” ou “porfírico” com um único átomo de ferro no centro

A síntese do heme depende de vários passos, cada um deles dependendo de uma enzima diferente. Cada enzima que não funciona direito (geralmente por uma mutação), diminui a produção de heme e acumula as moléculas dos passos anteriores, que levam aos sintomas.

Os múltiplos passos para a síntese do heme. Observe que nem sempre os sintomas são causados apenas pelas enzimas com defeito. Medicamentos como barbitúricos (diazepam, clonazepam, etc) estimulam toda a cascata de produção no fígado (afinal, precisa de mais enzimas do citocromo para metabolizar os medicamentos), piorando a situação e desencadeando crises agudas. A intoxicação por chumbo (lead) inibe enzimas e podem desencadear sintomas semelhantes à porfiria.

SINTOMAS

O modo mais útil de classificar as porfirias é separá-las em relação aos sintomas (que também dependem da fase prejudicada na formação do heme e se os intermediários acumulados são ou não solúveis em água). Assim, temos três tipos diferentes de porfirias: as agudas neuroviscerais, as cutâneas bolhosas crônicas e as cutâneas agudas não bolhosas com fotossensibilidade. Curiosamente, as três porfirias mais comuns se encaixam perfeitamente em cada uma dessas categorias.

PORFIRIAS NEUROVISCERAIS (PORFIRIA AGUDA INTERMITENTE)

As porfirias neuroviscerais danificam o sistema nervoso, sendo que o seu principal sintoma é dor abdominal, que pode ser muito intensa, sem nenhuma alteração no exame físico, exames laboratoriais e de imagem feitos comumente na urgência. Os sistemas nervoso sensitivo, motor e autonômico também podem ser afetados, causando náuseas, vômitos, constipação, palpitações, hipertensão, fraqueza muscular, perda de sensibilidade, dor nas costas, membros e peito e alterações psiquiátricas. Essas podem incluir confusão mental, ansiedade, alucinações e agressividade, o que faz com que muitas vezes os pacientes não sejam levados a sério em serviços de emergência.

Portadores de porfirias neuroviscerais, particularmente porfiria aguda intermitente (PAI), podem apresentar sintomas graves e de difícil diagnóstico (fonte)

Essas porfirias levam a crises repetidas que podem ser até fatais. Uma vez feito o diagnóstico (com dosagem de porfobilinogênio na urina), os medicamentos que desencadeiam as crises tem que ser suspensos. Se a menstruação também desencadeia crises, ela pode ser bloqueada. E temos ainda a possibilidade de injetar heme direto na veia, que chega no fígado, e bloqueia o metabolismo do heme, interrompendo a crise ou impedindo uma a cada ciclo menstrual.

PORFIRIAS CUTÂNEAS BOLHOSAS CRÔNICAS (PORFIRIA CUTÂNEA TARDA)

As porfirias cutâneas bolhosas, das quais a porfiria cutânea tarda (PCT) é a mais comum (e a porfiria mais comum de todas entre adultos) causam lesões bolhosas em áreas expostas à radiação ultravioleta do Sol. Essas bolhas depois desaparecem deixando cicatrizes e alterações na coloração da pele. As lesões vão se juntando com o passar dos anos e, se não tratadas, podem causar deformidades importantes.

A PCT em si é causada por uma mutação que não leva sozinha à doença, precisa de outros fatores para desencadear sintomas. O excesso de ferro (hemocromatose), álcool, hepatite C e HIV são os fatores mais comuns. Tratando esses fatores e incluindo hidroxicloroquina em dose baixa geralmente é suficiente para tratar a PCT. Infelizmente, as outras porfirias dessa classe não funcionam do mesmo modo e não tem tratamento bem definido.

PORFIRIAS CUTÂNEAS AGUDAS NÃO BOLHOSAS (PROTOPORFIRIA ERITROPOIÉTICA)

As porfirias cutâneas agudas não bolhosas, das quais a protoporfiria eritropoiética (EPP) é a mais comum, se manifestam como uma sensibilidade muito maior à luz, desde a infância. Enquanto na PCT a luz ultravioleta causa a reação, na EPP a reação ocorre na faixa de luz azul. Isso significa que a reação pode ocorrer mesmo dentro de casa, protegido por janela, e até mesmo com certos tipos de luz artificial. Poucos minutos podem ser suficientes para criar queimaduras de segundo grau, intratáveis. Além da dor, lesões repetidas levam a cicatrizes difusas, liquenificação e alterações na pigmentação.

Como os danos são causados por luz no espectro visível, protetores solares que bloqueiam a luz ultravioleta não adiantam. Algumas pessoas melhoram com beta caroteno, mas a melhora é discreta. Os portadores tem que se esconder da luz mesmo, o que limita opções de trabalho e convívio social. Uma opção mais recente é um medicamento chamado afamelanotide, que estimula a produção de melanina na pele, deixando a pele mais escura e protegendo parcialmente da luz.

Ficou curioso ? Leia mais sobre as porfirias aqui.

BIBLIOGRAFIA

  • Anderson, KE. Porphyrias: An Overview. UptoDate. Last Update Mar 11, 2022 (link)
  • Wang B, Bonkovsky HL, Lim JK, Balwani M. AGA Clinical Practice Update on Diagnosis and Management of Acute Hepatic Porphyrias: Expert Review. Gastroenterology. 2023 Mar;164(3):484-491. doi: 10.1053/j.gastro.2022.11.034. Epub 2023 Jan 13. PMID: 36642627.
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  • Porphyria Cutanea Tarda (PCT): A Photosensitive Disorder… (link)

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Texto criado em 17/04/23
Última atualização: 17/04/23