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Intoxicação pelo metanol e o fígado

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

O metanol (álcool metílico, CH₃OH) é um solvente industrial muito comum. Entra na composição de fluidos de limpador de para-brisa, descongelantes, tintas, vernizes e adesivos; é insumo na fabricação de plásticos, poliésteres e formaldeído e também aparece como combustível/adição em biocombustíveis.

O metanol é amplamente usado e pode ser encontrado com facilidade para venda.

As três vias principais são ingestão, inalação e absorção cutânea. Os grandes eventos com muitos casos estão quase sempre ligados à adulteração de bebidas, pelo baixo custo; surtos de 2018 no Irã ilustram altas taxas de mortalidade e sequelas visuais. A exposição ocupacional por inalação e contato dérmico também ocorre (observada em trabalhadores da área da saúde durante a pandemia pelo COVID-19, pelo uso constante de methanol para descontaminar as mãos).

  1. Metabolismo hepático: o metanol é oxidado no fígado pela álcool-desidrogenase (ADH) a formaldeído, rapidamente convertido por aldeído-desidrogenase (ALDH) a ácido fórmico (formiato); esse, por vias dependentes de tetraidrofolato, é finalmente transformado em CO₂ e água.
  2. Toxicidade do formiato: o formiato inibe a citocromo-c oxidase (complexo IV) na mitocôndria, resultando em hipóxia histotóxica; tecidos com alta demanda oxidativa (retina/neurônio óptico, gânglios da base) são especialmente vulneráveis. A acidose metabólica de alto ânion gap reflete acúmulo sistêmico de ácido fórmico.
  3. Efeito hepático direto: apesar de os alvo clínicos clássicos serem o nervo óptico e o sistema nervoso central, o fígado pode apresentar elevação transitória de transaminases e alterações histológicas em casos fatais: esteatose micro e macrovesicular, necrose focal, colestase intra-hepatocitária leve e degenerações hidrópica/“feathery” — achados atribuídos a disfunção mitocondrial e hipóxia sistêmica/choque.
  4. Comorbidades hepáticas (por exemplo, esteatose, doença hepática pelo álcool e outras) podem reduzir a reserva mitocondrial/folato e teoricamente agravar desfechos, embora a literatura clínica aponte o nervo óptico e o SNC como principais alvos de dano irreversível.
Fígado com esteatose micro e macrovesicular (Akhgari, 2013)

Há um período de latência (geralmente 12–24 h) entre a ingestão e os sintomas graves, pois a toxicidade decorre de metabólitos, não diretamente do metanol. Os sintomas iniciais podem simular embriaguez leve; com a conversão a formiato surgem cefaleia (dor de cabeça), náusea, vômitos, hiperventilação (respiração acelerada), dor abdominal e, sobretudo, sinais visuais (borramento, “visão de neve”, fotofobia), podendo evoluir a neuropatia óptica e cegueira.

Em casos graves, pode ocorrer acidose metabólica importante, convulsões, coma e choque. Exames podem mostrar gap osmolar elevado (precoce) seguido de ânion gap alto. Achados neurorradiológicos típicos incluem lesões dos gânglios da base (putâmen).

Ressonância nuclear magnética do cérebro com hiperssinal em T2 em regiões subcorticais e gânglios da base (Camurcuoglu, 2022)
  • Gasometria: acidose metabólica com ânion gap elevado; muitas vezes com hiperventilação compensatória.
  • Osmol gap: pode estar elevado nas fases iniciais (parental alto).
  • Dosagem de metanol (se disponível) e avaliação sequencial do lactato/formiato; considerar função renal, eletrólitos e enzimas hepáticas.
  • Indícios clínicos: qualquer sintoma visual em contexto compatível é um marcador de gravidade.

Observação: as doses e critérios contemplam adultos; em pediatria e gestantes, seguem o mesmo racional com ajustes de dose por peso e a mesma urgência no bloqueio da ADH, correção de acidose e diálise

1) Suporte e correção da acidose

  • Bicarbonato de sódio IV para corrigir agressivamente a acidemia (alvo pH ≥7,20–7,30), reduzindo a fração não dissociada do ácido fórmico que penetra no SNC e no nervo óptico. Pode ser necessária dose alta nas primeiras horas.

2) Antídotos (bloqueio da ADH)

  • Fomepizol é a terapia de escolha: 15 mg/kg IV (ataque)10 mg/kg IV a cada 12 h por 4 doses; depois 15 mg/kg a cada 12 h (autoindução). Durante hemodiálise, encurtar o intervalo para a cada 4 h ou redosar pós-diálise. Alternativa: etanol (se fomepizol indisponível), com monitorização rigorosa.

3) Cofator de folato

  • Ácido folínico (leucovorina) ou ácido fólico para acelerar a conversão do formiato: 1 mg/kg (máx. ~50 mg) IV a cada 4–6 h por pelo menos 24–48 h (ajustar com diálise). Evidência de benefício é indireta, mas segurança e racional bioquímico sustentam o uso.
Hemodiálise

4) Diálise

  • A hemodiálise intermitente é modalidade de escolha; contínuas são aceitáveis se a intermitente não estiver disponível.
  • Indicar terapia extracorpórea se qualquer dos critérios: coma, convulsões, déficit visual novo, pH ≤ 7,15, acidose persistente apesar de suporte/antídoto, ânion gap > 24 mmol/L, metanol sérico > 700 mg/L (com fomepizol), > 600 mg/L (com etanol) ou > 500 mg/L (sem bloqueio de ADH), e/ou função renal comprometida. Encerrar quando metanol < 200 mg/L e houver melhora clínica. Manter antídoto e folato durante a ECTR.

5) Outras medidas

  • Monitorar eletrólitos, função renal/hepática e marcadores de severidade. UTI se acidose grave, necessidade de diálise, instabilidade hemodinâmica ou acometimento neurológico/visual significativo. Oftalmologia precoce nos casos com queixa visual. Revisar e manejar co-ingestões e fatores de risco (p.ex., deficiência de folato).

Mortalidade e sequelas (principalmente cegueira) aumentam com atraso terapêutico e com a gravidade da acidose/formiato. A administração precoce de fomepizol reduz mortalidade e, não raro, evita diálise quando instituída antes da acidose.


  • EXTRIP Workgroup — recomendações para ECTR no metanol (critérios e metas de diálise). (extrip-workgroup)
  • StatPearls (2025) — toxicidade por metanol, doses de fomepizol, apresentação clínica. (InBio)
  • MSF (2023) — protocolo internacional; dose de ácido folínico/fólico. (Intoxicação por Metanol)
  • AJKD/NEJM reviews — abordagem terapêutica (bloqueio de ADH, correção de acidose, papel da diálise). (Ajkd)
  • Revisões de mecanismo — formiato e inibição do complexo IV (citocromo-c oxidase). (physoc.onlinelibrary.wiley.com)
  • Patologia hepática em casos fatais — alterações histológicas. (PubMed)
  • Epidemiologia de surtos/OMS — casos e resposta em saúde pública. (Organização Mundial da Saúde)
  • EPA. Toxicological review of methanol (noncancer), 2013
  • Mashallahi A, Mohamadkhani M, Ostadtaghizadeh A. Methanol Poisoning Outbreaks in Southern Iran in 2018: A Lesson Learned. Iran J Public Health. 2021 Jul;50(7):1502-1503. doi: 10.18502/ijph.v50i7.6650. PMID: 34568196; PMCID: PMC8426787.
  • Methanol poisoning. DynaMed
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  • Akhgari M, Panahianpour MH, Bazmi E, Etemadi-Aleagha A, Mahdavi A, Nazari SH. Fatal methanol poisoning: features of liver histopathology. Toxicol Ind Health. 2013 Mar;29(2):136-41. doi: 10.1177/0748233711427050. Epub 2011 Nov 14. PMID: 22082823.
  • Ashurst JV, Schaffer DH, Nappe TM. Methanol Toxicity. 2025 Feb 6. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2025 Jan–. PMID: 29489213.
  • Camurcuoglu E, Halefoglu AM. CT and MR Imaging Findings in Methanol Intoxication Manifesting with BI Lateral Severe Basal Ganglia and Cerebral Involvement. J Belg Soc Radiol. 2022 Jul 6;106(1):66. doi: 10.5334/jbsr.2836. PMID: 35859917; PMCID: PMC9267022.

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