Paracentese

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

Paracentese é um procedimento médico onde se remove líquido acumulado na cavidade abdominal (ascite). Está indicada em pacientes com condições como cirrose, insuficiência cardíaca, câncer ou outras doenças que causam a ascite. O objetivo do procedimento pode ser diagnóstico (colher o líquido para análise) ou terapêutico (para alívio dos sintomas). Nesse texto, focamos na paracentese decorrente de hipertensão portal associada a doença hepática crônica, principalmente cirrose.

   Em todo paciente com ascite recém diagnosticada, especialmente quando houver suspeita de ascite de outra etiologia não relacionada à hipertensão portal ou de peritonite bacteriana, deve ser colhido o líquido ascítico para análise laboratorial. Essa coleta é realizada através de punção, com agulha, da parede abdominal. É um procedimento muito simples nas ascites moderadas a severas (nas pequenas, pode ser necessário o auxílio de método de imagem, como a ultrassonografia ou a tomografia computadorizada), pouco doloroso (sente-se apenas uma pontada) e praticamente isento de riscos se realizado adequadamente.

   O líquido ascítico coletado é então analisado em laboratório, principalmente para obter dois valores: o gradiente de albumina soro-ascite (GASA) e a quantificação de leucócitos polimorfonucleares. Quando há suspeita de peritonite bacteriana, parte do material é aplicado imediatamente em frasco de hemocultura para diagnosticar a bactéria responsável. Quando há outras suspeitas, podem ser necessárias análises adicionais.

ascite5
Punção do abdome para coleta do líquido ascítico

   O gradiente de albumina soro-ascite é a simples diferença entre a quantidade de albumina no soro sanguíneo (medida por exame de sangue no mesmo dia da coleta da ascite) e a do líquido ascítico. Como a ascite causada por hipertensão portal é um filtrado do plasma, a quantidade de albumina na ascite é muito menor que a do plasma. Já nas ascites de outras causas, como a causada por câncer, onde há perda de sangue rico em albumina para dentro da cavidade abdominal, ou na ascite quilosa, causada por extravasamento de linfa, também rica em albumina, a diferença entre a quantidade de albumina do soro e da ascite é menor.

GASA ≥ 1,1 g/dL
(Hipertensão portal)
GASA < 1,1 g/dL
(Sem hipertensão portal)
Cirrose hepática (mais comum)Carcinomatose peritoneal
Hepatite alcoólicaTuberculose peritoneal
Trombose de veia portaPancreatite
Síndrome de Budd–ChiariSíndrome nefrótica
Falência cardíaca / pericardite constritivaAscite quilosa (alguns casos)

Em pacientes com cirrose e ascite com insuficiência hepática (Child maior que 9, bilirrubina maior que 3), insuficiência renal (creatinina acima de 1,2, uréia acima de 25 ou sódio abaixo de 120) e proteína no líquido ascítico menor que 1,5, pode ser usado antibiótico para prevenir a peritonite bacteriana espontânea (norfloxacino ou sulfametoxazol-trimetoprima). Depois de um episódio de hemorragia digestiva ou de peritonite bacteriana, o uso contínuo de antibiótico é recomendado.

   Os leucócitos polimorfonucleares (neutrófilos) são células de defesa do sistema imunológico. O achado de mais de 250 células por mm3 é altamente sugestivo de peritonite bacteriana espontânea, devendo ser tratado empiricamente (com antibiótico eficaz na maioria dos casos) ou com antibiótico dirigido de acordo com o resultado da cultura.

   A paracentese terapêutica é realizada quando o volume de líquido acumulado causa desconforto significativo, tanto pela sensação de pressão no abdome quanto dificuldade de se alimentar ou de respirar. Nessa situação, pode ser feita paracentese de alívio (até 5 litros) ou paracentese de grande volume (mais de 5 litros). A paracentese total geralmente é reservada para pacientes com diagnóstico bem estabelecido e ascite refratária.

A ascite é considerada refratária quando (1) não responde à dieta com restrição de sódio e diuréticos em altas doses (espironolactona 400 mg ao dia e furosemida 160 mg ao dia) ou (2) retorna após paracentese.

Um cuidado nas paracenteses acima de 5 litros é a administração concomitante de solução de albumina na veia (na dose de 6 a 8 gramas por litro retirado), para manter o equilíbrio de pressão nos vasos e prevenir o risco de síndrome hepatorrenal desencadeada pela paracentese.

Materiais

  • Seringa 10–20 mL + agulha 18–20G (diagnóstico)
  • Cateter tipo Jelco 14–18G ou kit próprio de paracentese (terapêutico)
  • Equipo e frasco a vácuo (grande volume)
  • Lidocaína 1–2% + agulhas 25G e 22G para infiltração
  • Antisséptico (clorexidina alcoólica)
  • Luvas, máscara, gorro, campo estéril, gaze
  • Coletor de amostra + frascos para cultura (preferência de frasco de hemocultura) e bioquímica

Avaliação pré-procedimento

  • História, exame físico, sinal de onda ascítica
  • US à beira-leito preferencial para localizar alça livre
  • Checar plaquetas e coagulação se disponível, mas não atrasar em ascite com suspeita de infecção

Consentimento

  • Explicar procedimentos, riscos, benefícios e alternativas

Zonas preferenciais:

  • Quadrante inferior esquerdo, 2–3 cm medial e cefálico à espinha ilíaca ântero-superior
  • Linha média, 2–3 cm abaixo da cicatriz umbilical (se sem cicatriz cirúrgica prévia)
paracenteseguiada
Paracentese abdominal. Esquerda: pontos de punção. Direita: paracentese guiada por ultrassonografia

Evitar: cicatrizes, veias colaterais, pele infectada, áreas com dor localizada, gravidez


  • Posicionar o paciente em decúbito dorsal, cabeceira 30°
  • Identificar o ponto (ideal: guiado por US)
  • Limpeza ampla com clorexidina alcoólica
  • Campo estéril
  • Luvas estéreis

  1. Aspirar lidocaína 1–2%
  2. Infiltrar pele, subcutâneo e peritônio em planos com agulha fina
  3. Aspirar antes de injetar para evitar aplicação intravascular
  4. Aguardar ~1 minuto

  • Introduzir agulha 18–20G em ângulo perpendicular (ou leve inclinação cranial)
  • Avançar lentamente aspirando suavemente
  • Ao obter líquido, coletar:
    • Tubo EDTA → celularidade (PMN)
    • Tubo seco → proteína, albumina, LDH
    • Hemocultura à beira-leito diretamente do frasco
  • Retirar a agulha e curativo compressivo

  • Introduzir cateter sobre agulha (Jelco ou kit)
  • Confirmar saída de líquido
  • Avançar o cateter e retirar a agulha
  • Conectar a sistema de drenagem por gravidade ou frasco a vácuo
  • Monitorar débito e sintomas
  • Retirar cateter, curativo compressivo

  • Albumina (para calcular GASA)
  • Contagem de células + polimorfonucleares por microlitro
  • Cultura com inoculação imediata nos frascos
  • Se indicado: gram, proteínas totais, citologia, ADA, amilase, triglicérides, PCR

Peritonite bacteriana espontânea: polimorfonucleares ≥ 250/mm³ com ou sem cultura positiva


Para paracentese de grande volume > 5 L

  • Albumina 20%: 6–8 g por litro drenado
  • Ex: 8 L → 48–64 g

Benefícios: prevenir disfunção circulatória induzida por paracentese (PCD), disfunção renal e mortalidade


ComplicaçãoPrevenção
HipotensãoInfusão lenta, albumina se grande volume, monitorar após procedimento
HemorragiaUS, evitar vasos, compressão pós-retirada
Perfuração intestinalUS, técnica correta, evitar peritonite loculada
InfecçãoAssepsia rigorosa
Fuga persistenteCurativo compressivo, cola cirúrgica se necessário
  • Gerenciamento da ascite como complicação da cirrose em adultos. World Gastroenterology Association (link)
  • Runyon BA. Management of Adult Patients With Ascites Due to Cirrhosis. AASLD Practice Guideline. 2013 (link)
  • Mattos, AA. Ascite: fisiopatologia, diagnóstico e tratamento. Programa de Educação Médica Continuada da Sociedade Brasileira de Hepatologia (link)
  • CARESS, N. et al. Multicenter randomized trial of albumin after large‐volume paracentesis in patients with cirrhosis and ascites. Hepatology, v. 80, n. 4, p. 1431-1442, 2024.
  • KUMAR, A.; DANCEL, R.; GALEN, B. T.; PATEL, S. A.; MA, I. W. Y.; COOL, J. A. Ultrasound‐Guided Paracentesis. The New England Journal of Medicine, v. 393, n. 9, e11, 4 set. 2025.
  • RUNYON, B. A.; et al. Management of Adult Patients With Ascites Due to Cirrhosis: Update 2013. Hepatology, v. 58, n. 4, p. 2085-2100, out. 2013.
  • TOLLEFSON, M. C.; SHOCKRO, A.; HOBDEN, A. Multiplicity of paracentesis outcomes in cirrhosis: a systematic review. Journal of Hepatology, v. 81, n. 2, p. 256-265, 2024.
  • VEGA-AZURRA, D.; et al. Recent advances in ascites management: a 2025 update for hepatologists. Journal of Hepatology, v. 83, n. 1, p. 62-76, jan. 2025.
  • WORLD GASTROENTEROLOGY ORGANISATION. Global guideline on the management of ascites in cirrhosis. Dublin: WGO, 2023. Disponível em: https://www.worldgastroenterology.org