Por que em doença hepática o “só um pouco” não existe.

Enfim chegamos àquela época no fim do ano que os portadores de doenças do fígado passam em consulta, são orientados da necessidade de abstinência alcoólica e não recebem a orientação muito bem (alguns chegam a ficar agressivos). Infelizmente, o médico não fala isso porque está de mal humor ou é sádico e pretende que sofra desnecessariamente. Muito menos porque não sabe do que está falando.
Apesar das notícias que ocasionalmente aparecem na mídia de que álcool em quantidades moderadas fazem bem à saúde, que vinho todo dia protege o coração, etc, isso não corresponde à realidade. São estudos limitados, muitas vezes a grupos étnicos específicos, usando um tipo de vinho ou outra bebida, com achados muito questionáveis. Mesmo nos estudos que mostrariam benefícios cardiovasculares ou no diabetes, os demais riscos à saúde representados pelo álcool superam os potenciais benefícios, tornando a recomendação de consumo leve banida da grande maioria de sociedades científicas.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) é categórica: “Não há nenhuma quantidade de consumo de álcool segura para a nossa saúde”. O álcool não é só uma substância psicoativa, tóxica e produtora de dependência, mas também está classificada no grupo 1 (mais perigoso) de indutores de câncer, junto do tabaco, asbesto e radiação. Está associado a pelo menos 7 tipos de câncer, incluindo os cânceres de esôfago, fígado, cólon e de mama.
O que causa lesão no fígado é o álcool em si, e independe do tipo de bebida. Algumas tem mais álcool do que outras, mas em quem tem doença hepática não há uma “dose segura”.
No caso específico do fígado, o álcool é um potente agente tóxico. Felizmente, a grande maioria das pessoas que consomem álcool em pequena quantidade não chegam a ter doença hepática significativa, pois o órgão é bem resistente e se regenera (quanto maior o consumo, no entanto, menor a probabilidade do fígado ser saudável). Por outro lado, em quem já tem uma doença do fígado, seja ela causada pelo álcool ou não, qualquer quantidade de álcool pode impedir a resolução da inflamação (nas hepatites de qualquer causa) ou desencadear inflamação quando a doença já estava controlada. E os efeitos de uma pequena dose de álcool pode ser persistente por meses, levando a piora da doença.

Infelizmente, vivemos numa sociedade que tenta convencer as pessoas que o único modo de se divertir ou comemorar algo é com o álcool. Se você tem doença do fígado, ou está preocupado com a saúde, ignore essa pressão e divirta-se sem o álcool mesmo. A diversão é a mesma e as consequências – sejam para a saúde a longo prazo ou a ressaca do dia seguinte – serão apenas boas lembranças.
Se você já tem doença hepática, abstinência de álcool continua sendo a recomendação mais segura e eficaz, não uma opção negociável. O “copinho social” pode parecer inofensivo, mas o dano hepático é acumulativo e não linear, e o risco não desaparece com bons desejos de fim de ano.
Se quiser brindar, que seja com bebidas sem álcool — porque, no fígado, um brinde seguro é sem etanol.

ALGUMAS ESTRATÉGIAS PARA LIDAR COM A PRESSÃO DE PARENTES E AMIGOS
1. Combine a resposta antes da festa
Ir “sem plano” aumenta muito a chance de ceder. Decida a resposta com antecedência. Frases prontas ajudam:
- “Estou em tratamento e não posso beber.”
- “Meu médico proibiu por enquanto.”
- “Estou cuidando da minha saúde.”
- “Prefiro não beber hoje.”
➡️ Sem explicações longas. Quanto mais você explica, mais a pessoa tenta argumentar.
2. Use o médico como “escudo social”
Para muitos pacientes, isso é libertador.
- “Meu hepatologista foi bem claro: não posso beber.”
- “Se eu beber, posso piorar a doença.”
📌 Transferir a decisão para o médico reduz culpa e debate.
3. Tenha sempre uma bebida sem álcool na mão
Estar com um copo cheio reduz ofertas repetidas. Sugestões:
- Água com gás + limão
- Refrigerante
- Drink sem álcool
- Cerveja 0,0%
➡️ Socialmente, parece que você está bebendo — e a pressão diminui.
4. Evite a pergunta “por quê?”
Ensine o paciente a encerrar o assunto com frases fechadas:
- “É recomendação médica.”
- “Prefiro não comentar.”
- “Não posso mesmo.”
📌 Não é falta de educação — é autocuidado.
5. Combine apoio com alguém de confiança
Antes da festa:
- Conte a uma pessoa-chave (cônjuge, irmão, amigo).
- Peça ajuda para desviar convites ou reforçar a resposta.
➡️ Apoio social ajuda muito.
6. Chegue depois e saia mais cedo, se necessário
Estratégia válida e saudável.
- Menos tempo = menos pressão
- Cansaço e álcool aumentam insistência dos outros
📌 Não é fracasso — é estratégia.
7. Evite “testar” sua força de vontade
Situações de risco:
- Brindes coletivos
- Jogos com bebida
- Pessoas que insistem muito
➡️ Oriente: não é fraqueza evitar, é prevenção.
8. Reforce o motivo principal (internamente)
Ajude o paciente a lembrar o que está em jogo:
- Exames melhores
- Menor risco de progressão
- Evitar internações
- Evitar transplante
📌 Motivação interna protege mais do que medo externo.
9. Normalize o “não beber”
Frase poderosa:
“Hoje, cuidar da saúde também é motivo de comemoração.”
➡️ Isso ajuda a reduzir o estigma e o sentimento de exclusão.
10. Se houver escorregão, procurar ajuda — sem culpa
Mensagem fundamental:
- Um deslize não é fracasso
- Culpa favorece abandono do cuidado
- Procure o médico para reorientação
📌 Abordagem compassiva melhora adesão.
“Você não está sendo difícil, fraco ou antissocial.
Você está sendo responsável com a sua saúde.”


REFERÊNCIAS
- ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS).
No level of alcohol consumption is safe for our health. WHO Regional Office for Europe, Copenhagen, 2023. Disponível em: https://www.who.int/europe/news/item/04-01-2023-no-level-of-alcohol-consumption-is-safe-for-our-health. Acesso em: 16 dez. 2025. - INTERNATIONAL AGENCY FOR RESEARCH ON CANCER (IARC).
Reduction or cessation of alcohol consumption. IARC Handbooks of Cancer Prevention, v. 20A. Lyon: World Health Organization, 2023. Disponível em: https://www.iarc.who.int/faq/iarc-handbooks-of-cancer-prevention-volume-20a-reduction-or-cessation-of-alcohol-consumption/
. Acesso em: 16 dez. 2025. - NATIONAL CANCER INSTITUTE (NCI).
Alcohol and cancer risk. NIH – National Cancer Institute, Bethesda, 2025. Disponível em: https://www.cancer.gov/about-cancer/causes-prevention/risk/alcohol/alcohol-fact-sheet
. Acesso em: 16 dez. 2025. - GBD 2020 ALCOHOL COLLABORATORS.
Population-level risks of alcohol consumption by amount, geography, age, sex, and year: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2020. The Lancet, London, v. 400, n. 10347, p. 185–235, 2022.
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Disponível em: https://www.thelancet.com/article/S0140-6736(22)00847-9/fulltext
. Acesso em: 16 dez. 2025. - AJMERA, V.; TERRAULT, N. A.; HARRISON, S. A.
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Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC11040545/
. Acesso em: 16 dez. 2025. - BRASIL. Ministério da Saúde.
Portaria nº 541, de 14 de março de 2002. Estabelece critérios para cadastramento de receptores de transplante hepático no Sistema Nacional de Transplantes. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 mar. 2002.
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