Hepatite medicamentosa, tóxica ou induzida por drogas (DILI)

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

INTRODUÇÃO

Medicamentos, toxinas e suplementos podem causar lesões no fígado, que podem se manifestar como alterações em exames laboratoriais, quadros dramáticos com icterícia intensa que dura meses, perda da função do fígado e, se durar tempo o suficiente, levar até a cirrose. Isso pode acontecer com medicamentos comuns, vendidos sem receita, medicamentos dito “naturais”, chás, suplementos para emagrecer ou ganhar massa muscular.

O fígado é considerado a “indústria bioquímica” do organismo. Tudo o que ingerimos e é absorvido pelo sistema digestivo passa primeiro pelo fígado, onde os nutrientes são transformados e as toxinas são, em sua grande maioria, eliminadas. Isso torna o órgão o que mais sofre com substâncias tóxicas, incluindo aí plantas e medicamentos.

Estima-se que, a cada ano, surgem 13,1% a 19,1% novos casos a cada 100.000 pessoas. Pode parecer pouco, mas é responsável por 25% das insuficiências hepáticas agudas graves. Antibióticos são a principal causa (45,4%), sendo que a combinação de amoxicilina com clavulanato é o medicamento mais comum. Depois dos antibióticos, a segunda maior causa (e com aumento importante nos últimos anos) são os medicamentos “naturais” (incluindo fitoterápicos e chás) e suplementos nutricionais (incluindo aí “shakes” para emagrecer, chás incluindo os produzidos em casa e suplementos de academia), responsáveis por 16,1% dos casos. Em seguida vem os medicamentos cardiovasculares (9,8%), neurológicos (9,1%), para câncer (5,5%) e analgésicos (3,7%). Por questões culturais, em países asiáticos mais de 70% dos casos são por ervas e suplementos.

Alguns conceitos são importantes para entender as DILI (drug-induced liver injury, lesão hepática induzida por drogas, que é o termo recomendado hoje, englobando hepatite tóxica e medicamentosa). O primeiro é que, enquanto medicamentos produzidos em laboratórios são geralmente bem estudados e conhecemos como e porquê causam lesões ao fígado, medicamentos “naturais” podem conter substâncias pouco estudadas, desconhecidas ou simplesmente “secretas” (estudo norte americano mostrou que grande parte dos suplementos produzidos no país continham substâncias que não estavam descritas na embalagem, incluindo hormônios para aumentar a eficácia do produto). Mas preocupante ainda, medicamentos naturais, ervas e chás, mesmo as produzidas em casa, podem estar contaminadas com fungos que são tóxicos (responsável por casos de hepatite grave em marca mundialmente conhecida de “shakes”) ou cancerígenos (um exemplo clássico é a contaminação de amendoim por aflatoxinas produzidas por fungos Aspergillus flavus e A. parasiticus, que causa hepatocarcinoma).

Em 2018 o FDA, órgão que regula alimentos e medicamentos nos EUA, publicou que encontrou 746 suplementos alimentares adulterados com medicamentos, incluindo esteróides, hormônios tireoidianos e fármacos para disfunção erétil. E isso nos EUA, onde a fiscalização e as leis são mais exigentes.

Outro conceito é que as DILI em alguns casos podem ser dependentes da dose do medicamentos, como no caso do paracetamol. Nessa situação, sabemos que até certa dose (que pode depender também de interação com outros fármacos) o medicamento é seguro. Chamamos essas reações de intrínsecas. No caso dos medicamentos naturais, onde a quantidade do princípio ativo (a substância na planta que dá o efeito benéfico) pode variar até 140% (Herbal roulette. Consumer Reports. November 1995:698-705 e Herbal Rx promises and pitfalls. Consumer Reports. March 1999:44-48) mesmo sob rigorosos processos industriais, dizer se está tomando uma dose segura ou tóxica é bem mais difícil.

Outros medicamentos, infelizmente, levam a reações que chamamos de idiossincráticas, ou seja, dependem de predisposições pessoais do organismo para aquele medicamentos, que podem ser imprevisíveis e independentes da dose. Assim, um fármaco considerado seguro pode causar lesão grave, ou outro tomado na dose correta pode ser tóxico àquela pessoa. Felizmente são mais raras, responsáveis por apenas 1\7 das DILI.

Medicamentos mais comuns que causam DILI de forma intrínseca (dose dependente) ou idiossincrática (imprevisível). Note que alguns são medicamentos muito utilizados na prática.

Finalmente, fica a questão do curso da DILI. Ela pode ser aguda, levando a quadro exuberante de icterícia ou fazer o fígado parar de funcionar, mas também pode causar lesão crônica. Isso é mais importante no caso de medicamentos como os para pressão alta, diabetes, infecção urinária de repetição, etc, onde a pessoa pode tomar o fármaco por anos. Assim, mesmo que a lesão seja leve e sem sintomas, o fígado fica em estado constante de destruição de células, regeneração e acúmulo de cicatrizes, chegando com o passar dos anos ao estágio de cirrose e suas complicações, incluindo câncer.

FATORES DE RISCO

Ainda não chegamos no ponto de conhecer quais são os genes responsáveis por cada reação idiossincrática a cada medicamento ou suplemento. Mesmo dos que sabemos, são pouquíssimas as situações onde esses genes podem ser pesquisados antes de iniciar um tratamento. Por enquanto, o que sabemos é que algumas situações aumentam o risco de DILI.

Variáveis que afetam o risco de lesões idiossincráticas

A idade afeta o risco dependendo do medicamento. Crianças são mais predispostas a DILI por anticonvulsivantes, especialmente valproato, lesão por antibióticos, propiltiouracil (para hipertireoidismo) e síndrome de Reye por aspirina. Com aumento da idade aumenta o risco de doença pela amoxicilina + clavulanato, isoniazida (para tuberculose) e nitrofurantoína (para infecção urinária).

Não há diferença de risco dependendo do gênero, mas vale notar que mulheres estão mais propensas a apresentar um quadro muito semelhante a hepatite autoimune causada por metildopa, nitrofurantoína, diclofenaco e minociclina. Gestantes, por outro lado, estão parcialmente protegidas de DILI pois evitam automedicação e médicos também medicam muito menos, mas estão expostas ao risco de lesão pela metildopa e hidralazina, já que são as drogas de escolha para hipertensão na gestação.

Embora seja controverso que o consumo de álcool com medicamentos favoreça o aparecimento de DILI, a presença de doença prévia pelo álcool pode piorar a evolução, assim como o consumo do álcool enquanto há lesão pelo medicamento. Além disso, o consumo ativo de álcool pode dificultar o diagnóstico e prolongar o tempo da doença. A recomendação de abstinência alcoólica até a resolução da DILI é simples bom senso.

EVOLUÇÃO DA DOENÇA

Basicamente, há 2 padrões de evolução da DILI: ou a lesão ocorre principalmente nos hepatócitos, o que chamamos de doença hepatocítica, ou nas células do canal da bile, o que chamamos de colestática. Ambas evoluem com destruição de hepatócitos e podem evoluir com insuficiência hepática aguda com necessidade de transplante ou cirrose se durar o suficiente para chegar a esse ponto. A lesão colestática é clinicamente mais evidente, com icterícia que pode ser intensa desde as fases iniciais, e tem a tendência a ser mais grave, com até 10% de mortalidade. Além disso, diferenciar um padrão do outro ajuda a confirmar o diagnóstico.

Hepatócitos são as principais células do fígado (em rosa). Os canais biliares (verde) recolhem a bile produzida pelos hepatócitos.

Um método simples de diferenciar lesão hepatocítica de colestática é calcular o “valor de R”, que é simplesmente calcular a divisão do ALT sobre o limite superior do laboratório e dividir isso pela divisão da fosfatase alcalina do paciente sobre o limite do laboratório. Se o resultado for menos que 2 é colestático, se for acima de 5 é hepatocítico, se for entre 2 e 5 é padrão misto.

Medicamentos mais associados a DILI, quanto tempo demoram para causar lesão ou sintomas e qual o padrão de lesão geralmente observado. Para informações mais detalhadas, consultar o LiverTox.

DIAGNÓSTICO

Infelizmente não há um exame que mostre que a lesão hepática é causada por um medicamento, erva ou suplemento. O diagnóstico depende de uma história clínica minuciosa, avaliação adequada do tipo de lesão (hepatocítica, colestática, etc.) observada no fígado, exclusão de outras doenças, algumas vezes dependendo de biópsia hepática e comparar o que foi observado com o padrão de lesão descrito para a droga. Mesmo assim muitas vezes não é suficiente para fazer o diagnóstico, precisando fazer teste de washout (suspender a medicação e esperar o fígado normalizar) e, em caso de dúvida, teste de desafio, ou challenge (voltar a tomar a medicação e observar se volta a piorar).

Pode parecer uma estratégia estúpida, mas vamos dizer que a pessoa tem epilepsia e só conseguiu controlar a doença com valproato, mas os exames mostraram hepatite e a investigação de outras causas foi negativa. Você pode tentar suspender a medicação e observar se os exames normalizam. Se mesmo assim ficar dúvida, ou se o fármaco substituto estiver sendo insuficiente ou causando efeitos colaterais, o neurologista pode trocar de volta para o valproato e os exames voltam a alterar. Diagnóstico fechado com washout e challenge !

Quando se diz “fazer história clínica minuciosa”, nesse caso, significa perguntar especificamente sobre uso de álcool, drogas, medicamentos, suplementos, chás, etc, várias vezes durante a consulta inicial e repetir a pergunta em todas as consultas seguintes até que o diagnóstico esteja fechado. Muitas vezes paciente escondem consciente ou inconscientemente informações valiosas, por motivos que conhecemos e provavelmente outros que não consegui ainda entender.

Há diversos algoritmos, ou “caminhos” para o diagnóstico da DILI, mas todos dependem de opiniões de especialistas, levando em consideração a experiência pessoal de cada um deles aliada às doenças mais comuns onde estão e a disponibilidade de exames onde trabalham. Nenhum deles foi comparado adequadamente e considerado superior aos outros, então cada médico pode escolher o caminho que achar mais adequado. Recomenda-se, no entanto, encaminhar paciente para avaliação por hepatologista se o paciente for sintomático e, especialmente nos pacientes ictéricos com ou sem sinais de insuficiência hepática, encaminhar para serviço médico de nível terciário. Nos demais, não esquecer de realizar a investigação básica abaixo:

Dados considerados “mínimos” para a investigação (na prática, dependendo do quadro clínico e epidemiologia alguns mais podem ser necessários e outros descartados)

Outras doenças que costumam se confundir com DILI e precisam ser descartadas são as hepatites autoimune, C e E, hepatites causadas por infecções sistêmicas como Epstein-Barr, citomegalovírus e herpes, isquemia hepática, síndrome de Budd Chiari, doença de Wilson, cálculos biliares e neoplasias.

Algoritmo diagnóstico proposto pelo American College of Gastroenterology (fonte).

Mas se mesmo assim o diagnóstico estiver difícil, é possível utilizar o RUCAM (Russel Uclaf Causality Assessment Method) para avaliar a probabilidade de que o medicamento suspeito realmente esteja causando a lesão no fígado.

Como calcular e interpretar o RUCAM (fonte).

A biópsia não é necessária em todos os casos de DILI, geralmente sendo indicada só quando há necessidade de diferenciar de outra doença com apresentação semelhante e na qual a biópsia pode ajudar a definir o diagnóstico, como a hepatite autoimune.

Biópsias hepáticas de pacientes com DILI. A. Necrose coagulativa de zona 3 em paciente com hepatite grave por duloxetina. B. Esteatose microvesicular em caso fatal de provável reação a eritromicina. C. Reação ductular, colestase e inflamação neutrofílica em reação severa a duloxetina. D. Inflamação eosinofílica e granulomatosa por atenolol (Kleiner et al)

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