Hepatite autoimune

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

INTRODUÇÃO

   A hepatite autoimune (HAI) é uma doença causada por um distúrbio do sistema imunológico, que reconhece as células do fígado (principalmente hepatócitos) como estranhas. A partir daí o sistema imune desencadeia uma inflamação crônica, com destruição progressiva do fígado e a formação de cicatrizes (fibrose). Sem o tratamento adequado em tempo, isso pode levar a progressão para cirrose com suas complicações, como varizes de esôfago, ascite e encefalopatia hepática.

O que são doenças autoimunes ? São doenças onde o sistema imunológico não ataca apenas vírus e bactérias que ameaçam a nossa saúde, mas também células normais do nosso organismo. Isso acontece quando há um defeito (geralmente genético) que faz com que as células imunes “pensem” que uma célula normal do corpo é estranha e a ataque. Algumas doenças autoimunes são específicas para um tipo de célula, como o diabetes que ataca as ilhotas do pâncreas, enquanto que outras atacam várias células de órgãos diferentes, como o lúpus eritematoso sistêmico. Como o defeito está no sistema imunológico e não no alvo, é comum que uma pessoa tenha mais que uma doença autoimune (como tireoidite e colangite biliar primária, que atacam a tireoide e os canais da bile). E como tem base genética, não temos até o momento como curar essas doenças, apenas como controlá-las.

   A hepatite autoimune é uma doença relativamente rara, acometendo cerca de entre 11 e 17 pessoas a cada 100.000, mas sua incidência está crescendo. É mais comum em mulheres (3,6 para cada homem) e pode se manifestar em qualquer grupo étnico e faixa etária. A apresentação (surgimento dos sintomas) é geralmente inespecífica, com fadiga, icterícia, náusea, dor abdominal e dores articulares, mas os quadro clínico inicial pode variar desde completamente assintomático (35-45% dos pacientes) até a falência hepática com encefalopatia. Cerca de um terço dos adultos e metade das crianças com a doença já se apresentam com cirrose ao diagnóstico. A presença ou ausência dos sintomas, no entanto, não significa necessariamente diferença no estágio da doença – o grau de inflamação do fígado e a presença ou não de cirrose independe da existência de sintomas, que surgirão eventualmente em 70% dos inicialmente assintomáticos.

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A hepatite autoimune pode ocorrer em qualquer idade, mas principalmente na puberdade e por volta dos 50 aos 70 anos, mais frequentemente em mulheres. A doença varia tanto em idade quanto em manifestações clínicas, que se refletem em padrões diferentes de achados laboratoriais. As mutações genéticas que já foram relacionadas à doença são tão variadas e em genes tão diferentes que pode ser que o contato com vírus, bactérias e toxinas que confundem nosso sistema imune sejam tão ou mais responsáveis pela doença do que a mutação em si. É correto concluir que a hepatite autoimune é um conjunto de doenças diferentes, que tem em comum apenas ser uma doença autoimune que atinge primariamente os hepatócitos.

   Antes do surgimento da corticoterapia (supressão do sistema imunológico com hormônio), estimava-se que 40% dos pacientes com doença severa faleciam em 6 meses, e os que sobreviviam além disso desenvolviam cirrose e suas complicações. Estudos posteriores demonstraram grande eficácia do tratamento com prednisona (corticosteróide) sozinha ou associada a azatioprina (outro imunossupressor), que se tornou o tratamento padrão para a doença. Novas drogas vêm surgindo como opções em pacientes que apresentam efeitos colaterais ou que não responderam ao tratamento anterior, permitindo o controle ainda melhor de casos anteriormente difíceis. Infelizmente, como a doença evolui silenciosamente na maioria dos casos, o diagnóstico com cirrose avançada ainda ocorre, mas o transplante hepático para esses casos e para aqueles nos quais a doença progrediu apesar do tratamento tem ótimos resultados, com sobrevida em 10 anos de cerca de 75%.

SINTOMAS

   A doença pode ser diagnosticada completamente assintomática, através de exames laboratoriais (especialmente AST e ALT) de rotina ou achado de doença hepática em ultrassonografia. Mas ela pode também se manifestar com insuficiência hepática, como se fosse uma hepatite aguda, ou como uma descompensação de cirrose sem diagnóstico prévio.

O surgimento de icterícia (olhos e pele amarelados) geralmente é o que leva a procurar atendimento médico.

   Os sintomas mais comuns na doença crônica são fadiga, mal estar, desconforto na região do fígado, letargia, anorexia, perda de peso, náuseas, coceiras, dores articulares, febre baixa e episódios de icterícia. À medida que a doença vai avançando e progredindo para cirrose, podem surgir complicações da mesma, como esplenomegalia, ascite, hemorragia digestiva ou encefalopatia hepática. É importante saber que a encefalopatia durante a apresentação aguda é sinal do que chamamos de hepatite fulminante, de altíssima mortalidade, e indica transplante hepático de urgência.

DIAGNÓSTICO

Com base em tudo o que colocamos acima, já dá para perceber que o diagnóstico da hepatite autoimune não é tão simples. A dica de como diagnosticar está no nome em si:

  1. Confirmar que é uma hepatite (inflamação do fígado)
  2. Encontrar sinais de que se trata de uma doença autoimune (aumento de anticorpos, observados pelo aumento de gamaglobulinas e presença de chamados “autoanticorpos”)
  3. Excluir outras causas de hepatites, principalmente por álcool, medicamentos (especialmente macrodantina) e vírus
  4. Tratar como uma doença autoimune e observar melhora (e piora se interromper o tratamento)

Para ajudar no diagnóstico, existem tabelas detalhadas que dão ou tiram “pontos” e, no final, você tem uma quantidade de pontos que podem significar diagnóstico “provável” ou “definitivo” de hepatite autoimune antes do tratamento. Conforme a doença melhorou com a medicação e/ou piorou se parou, alguns pontos são acrescentados (deveriam ser retirados também se não houve resposta). O “escore” ou tabela de pontos mais utilizado no Brasil ainda é o estabelecido em 1999 pelo International Autoimmune Hepatitis Group, chamado de ERDHAI e disponível aqui.

É só somar ou subtrair pontos e chegar no escore final

Hepatite

Sabemos que a pessoa tem hepatite (inflamação dos hepatócitos) quando nos exames de sangue observamos aumento de AST (TGO) e ALT (TGP). Se há aumento de fosfatase alcalina ou gama glutamil transferase, isso indica colangite (inflamação nas vias biliares), que não é o padrão da hepatite autoimune.

Hepatites são inflamações dos hepatócitos, essa células amareladas na figura e que representam a maioria das células do fígado. Colangites, que inflamam os ductos biliares (em verde) também inflamam os hepatócitos e podem confundir o diagnóstico

Além dos exames laboratoriais, outra maneira de confirmar a hepatite é a biópsia hepática. A análise microscópica do fígado vai demonstrar aumento de células do sistema imune atacando as células do fígado, e o padrão dessa inflamação pode ajudar a confirmar o diagnóstico de hepatite autoimune, embora nenhum dos achados na biópsia dê um diagnóstico definitivo, ainda sendo necessário levar o conjunto do quadro clínico e exames laboratoriais para uma interpretação adequada.

Biópsia hepática na hepatite autoimune. Os achados mais típicos são A: hepatite de interface, infiltração de células linfoplasmocitárias no fígado (setas); B: visão mais aproximada de plasmócitos; C: infiltração ao redor de vênula hepática; D: emperilopese e E: rosetas de hepatócitos regenerando (setas). Fonte.

A biópsia hepática é especialmente importante quando há sinais de mais de uma doença atacando o fígado, como hepatite viral e esteato hepatite, pois pode apontar qual doença está causando mais dano ao fígado e orientar o tratamento. Além disso, a análise do fígado vai mostrar em que estágio a doença está, se inicial ou se já tem cirrose.

Sinais de doença autoimune

Anticorpos (também chamados de imunoglobulinas) são glicoproteínas produzidas por células chamadas linfócitos B, e cada tipo de anticorpo é criado para atingir e destruir um alvo diferente. Anticorpos são, digamos assim, mísseis teleguiados programados para atingir tipos específicos de alvos, e os auto anticorpos miram células do nosso organismo.

No caso da hepatite autoimune, temos três auto anticorpos principais: o FAN (fator anti núcleo, também chamado de anticorpo antinuclear), o anti músculo liso e o anti LKM-1. Caso exista forte suspeita de HAI mas todos esses foram negativos, é possível complementar pesquisando outros auto anticorpos, como anti antígeno hepático solúvel (SLA), anti citosol hepático (LC-1), p-ANCA, anti actina, anti alfa actina e anti LKM-3. Esses últimos exames nem sempre estão disponíveis na prática.

De modo geral, dá para diferenciar dois tipos diferentes de hepatite autoimune que tem características comuns, e isso ajuda a prever a evolução da doença. A HAI tipo 1 é mais comum em adultos, causa lesão mais lenta e silenciosa do fígado e pode ser descoberta já com cirrose, especialmente em idosos. A HAI tipo 2 é mais característica de crianças, especialmente meninas, com lesão intensa no fígado e maior risco de hepatite fulminante e necessidade de transplante.

TRATAMENTO

O tratamento da hepatite autoimune é realizado com medicamentos. Os objetivos do tratamento são controlar sintomas, normalizar exames e a inflamação do fígado, reduzir a fibrose e a progressão da doença, sempre com a menor dose possível de medicamentos para atingir esses objetivos. Nem sempre o tratamento precisa ser contínuo, algumas vezes pode ser suspenso por tempo indeterminado, mas só naquelas pessoas sem qualquer sinal de inflamação e com acompanhamento médico rigoroso.

Há diversas estratégias de tratamento da HAI com pequenas variações, sendo que todas são igualmente eficazes, divididas em duas, fases: a de indução (quando você controla a inflamação) e a de manutenção (quando você evita que a inflamação volte).

De modo geral, o tratamento começa com um glicocorticóide. O mais usado em nosso meio é a prednisona (europeus preferem prednisolona, mas não há nenhuma diferença prática, e há a possibilidade de budesonida 3 mg 3 vezes por dia, mas não em casos graves nem quando há cirrose, mas é bem mais cara e às vezes difícil de achar). Começamos a prednisona com dose de 40 a 60 mg/dia em adultos e 1-2 mg/kg/dia, reavaliando a cada 4 a 8 semanas até a inflamação desaparecer.

A azatioprina é outra medicação muito utilizada. Podemos começar junto com a prednisona ou apenas se não houver melhora adequada só com o glucocorticóide. Prefiro começar com dose mais baixa (50 mg/dia em adultos, 1 mg/kg/dia em crianças) e aumentar a dose a cada 4-8 semanas se necessário.

O micofenolato de mofetila é uma opção à azatioprina, quando não há resposta adequada à azatioprina ou quando há toxicidade da medula óssea por essa medicação, mas é cara e com maior risco de predispor a infeções secundárias. Outros imunossupressores potentes como a ciclosporina e o tacrolimus têm os mesmos riscos, mas foram menos estudados na hepatite autoimune.

Uma vez que a inflamação está controlada (exames laboratoriais normais, e preferencialmente biópsia também normal), tentamos reduzir a dose aos poucos (quanto maior a pressa, maior o risco da inflamação voltar e ter que começar tudo de novo!), até prednisona 5 a 10 mg/dia e, se estiver usando azatioprina, suspender a prednisona.

Recomenda-se não suspender completamente o tratamento com menos de 2 meses de exames (e preferencialmente biópsia também) completamente normais. É importante ter em mente que o retorno da doença ocorre na maioria das pessoas em algum momento, e isso pode ser completamente assintomático até a cirrose, portanto o acompanhamento médico é obrigatório.

DOENÇAS ASSOCIADAS

Como a HAI é uma doença do sistema imunológico, é comum que apareça junto de outra ou mais doenças autoimunes. A mais comum é a doença autoimune da tireoide (manifestada como hiper ou hipotireoidismo dependendo da fase), mas também são comuns doenças reumáticas, diabetes tipo 1, doenças dermatológicas (vitiligo, alopecia areata, urticária, vasculites), anemia hemolítica autoimune e doenças gastrointestinais (doença celíaca e doença inflamatória intestinal – retocolite ulcerativa ou doença de Crohn).

Além disso, o hepatócito pode não ser o único “alvo” no fígado do sistema imunológico mal guiado. Ele também pode atacar as células dos canais da bile, mostrando um padrão compatível com colangite biliar primária ou colangite esclerosante primária. Chamamos isso de “síndrome de superposição”, “síndrome mista” ou “overlap”, e geralmente o paciente só melhora quando ambas as condições são tratadas ao mesmo tempo.

TRANSPLANTE HEPÁTICO

O transplante hepático pode ser necessário na hepatite autoimune em duas situações muito diferentes: tardiamente na doença crônica avançada ou a qualquer momento na apresentação fulminante.

No caso da doença crônica, o ciclo de lesão/regeneração do fígado persistindo por década(s) culmina no estágio de cirrose. O transplante nessa situação ocorre quando o fígado não consegue mais desempenhar suas funções e o risco da cirurgia é menor que o risco de deixar como está (geralmente quando há MELD superior a 15). Outra indicação comum é quando se diagnostica um hepatocarcinoma em sua fase inicial (o que geralmente só ocorre em quem faz o acompanhamento médico rigoroso).

Já no caso da doença de início abrupto (hepatite aguda fulminante ou agudização de doença crônica), é muito mais difícil saber quando indicar o transplante. A insuficiência hepática grave (falência do órgão) é uma indicação clara, mas 2 semanas com quadro agudo intenso sem resposta aos medicamentos pode ser suficiente para a cirurgia.

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Publicado em: 2002
Última atualização: 08/01/2023