
O café é uma das bebidas mais apreciadas do mundo. Seu aroma, sabor e efeito estimulante fazem parte da rotina de milhões de pessoas. Nas últimas décadas, a ciência tem observado cada vez mais benefícios da bebida, especialmente para o fígado. Nossa melhor compreensão desse tema hoje nos convida a olhar o café não apenas como combustível para o dia, mas como aliado potencial na proteção hepática.
Recentemente, o artigo “Coffee for the liver: a mechanistic approach”, escrito por Vargas-Pozada e colegas e publicado na revista Biochemical Pharmacology revisou de forma abrangente a literatura esperando elucidar por que o café pode proteger o fígado. Ele reforça evidências observacionais, experimentais e clínicas de que o consumo regular de café — sobretudo em “alto consumo”, definido como 3 ou mais xícaras por dia — se associa a menor risco de doenças hepáticas crônicas, fibrose, cirrose e câncer de fígado.
Mas como isso funciona, e o que significa para quem toma café? Vamos por partes.
O que a ciência mostra (até hoje)
1. Menores níveis de enzimas de lesão hepática
Diversos estudos clínicos observacionais identificaram que quem consome café habitualmente tende a apresentar menores níveis de enzimas como ALT, AST e GGT, marcadores usados para detectar inflamação ou lesão no fígado. Isso sugere que o café pode contribuir para reduzir “agressões silenciosas” ao fígado, mesmo em pessoas com fatores de risco (sobrepeso, resistência insulínica, consumo de álcool, hepatites virais etc.).
2. Menor acúmulo de gordura hepática e menor risco de esteatose
A doença hepática gordurosa não alcoólica (hoje chamada de MASLD — metabolic dysfunction-associated steatotic liver disease) é extremamente comum, prevalente, especialmente em contextos de obesidade, sedentarismo e resistência insulínica. Várias análises apontam que o café pode reduzir risco de MASLD ou atenuar sua evolução. Estudos recentes e revisões sistemáticas associam o consumo regular de café a menor infiltração gordurosa no fígado e menor probabilidade de fibrose em pacientes com MASLD.

3. Menor risco de fibrose, cirrose e câncer de fígado
Talvez os achados mais robustos e consistentes digam respeito à proteção contra formas avançadas de doença hepática. Consumidores regulares de café têm menor risco de evoluir para fibrose significativa, cirrose e até câncer de fígado. Meta-análises apontam que o consumo de café está associado a risco reduzido de câncer (hepatocarcinoma) em até 40% em comparação a não-consumidores. Além disso, essa associação protetora não se limita à população saudável: indivíduos com hepatites virais (como hepatites B e C), ou com histórico de consumo de álcool, também parecem se beneficiar. Em pacientes com hepatite C crônica, por exemplo, o consumo regular de café foi associado a menor velocidade de progressão para fibrose e cirrose.
Quais são os mecanismos biológicos por trás dos benefícios?
O artigo de Vargas-Pozada et al., assim como outros trabalhos recentes, lançam luz sobre como o café poderia exercer esses efeitos protetores:
- Compostos bioativos: além da cafeína, o café contém polifenóis, diterpenos (como cafestol e kahweol), ácidos clorogênicos, e uma variedade de moléculas com ação antioxidante e anti-inflamatória.
- Redução do estresse oxidativo e inflamatório: essas substâncias ajudam a diminuir o dano provocado por radicais livres e a produção de citocinas inflamatórias — fatores chave na progressão da fibrose hepática.
- Ação antifibrótica e anticancerígena: alguns compostos do café modulam vias de ativação de células de fibrose e processos de cicatrização exagerada, reduzindo a deposição de colágeno no fígado; outros interferem na ativação de moléculas que promovem a transformação celular e carcinogênese.
- Melhora da sensibilidade à insulina e metabolismo de gorduras: isso é especialmente relevante para MASLD, já que resistência insulínica e disfunção metabólica são pilares da doença.
- Regulação do eixo intestino-fígado (gut-liver axis): há evidências iniciais de que o café pode influenciar a microbiota intestinal e a permeabilidade intestinal, reduzindo estímulos inflamatórios vindos do intestino ao fígado.

Importante: esses mecanismos não dependem exclusivamente da cafeína — versões descafeinadas também têm mostrado benefícios em algumas análises.
Mas afinal: quanto café “faz bem” — e há riscos?
De modo geral, a faixa que costuma aparecer na literatura como ideal para proteção hepática gira em torno de 2 a 4 xícaras por dia. Alguns estudos definem “alto consumo” como ≥ 3 xícaras/dia. Esse consumo parece trazer benefícios importantes sem evidência consistente de efeitos adversos ao fígado.
Todavia, “moderação” é a palavra-chave. O café não é uma pílula milagrosa: seu efeito positivo tende a ser mais evidente quando inserido em um estilo de vida saudável — alimentação equilibrada, atividade física, abstinência ou moderação no álcool, controle de peso e doenças metabólicas.

Além disso, certos grupos (gestantes, pessoas com insônia, sensíveis à cafeína, com contraindicações específicas) devem discutir o consumo com seu médico.
Limitações e o que ainda não sabemos
É importante destacar que grande parte das evidências derivam de estudos observacionais e associações epidemiológicas. Ou seja: é difícil provar com certeza absoluta que foi o café que causou a proteção, e não algum outro fator associado (como dieta saudável, menor consumo de álcool, estilo de vida, genética, etc.).
Além disso, as doses, tipo de preparo (filtrado, coado, espresso, descafeinado), a composição do café (diferença entre grãos, torra, método de filtragem) e características individuais (idade, sexo, comorbidades, genética) podem influenciar o efeito — e esses detalhes ainda não foram totalmente elucidados.
Por fim, embora os dados mais recentes sejam consistentes, nunca devemos encarar o café como “tratamento” ou substituto de medidas fundamentais: controle de peso, alimentação saudável, atividade física, rastreamento de hepatites, abstinência ou moderação do álcool, controle de comorbidades (diabetes, hipertensão, dislipidemia), etc.
Referências básicas
- VARGAS-POZADA, E. E. et al. Coffee for the liver: a mechanistic approach. 2025.
- WADHAWAN, M. et al. Coffee and Liver Disease. PMC, 2016.
- RASHEED, N.; RASHEED, Z. Coffee and liver health: Exploring the protective benefits and mechanisms of coffee and its bioactive compounds in liver disorders. PMC,
- YESIL, A.; YILMAZ, Y. Coffee consumption, the metabolic syndrome and non-alcoholic fatty liver disease. Alimentary Pharmacology & Therapeutics, v. 38, p. 1038–1044, 2013.
- MORISCO, F. Coffee and Liver Health. Journal of Clinical Gastroenterology, 2014.
- DI PIETRANTONIO, D. et al. Protective Effect of Caffeine and Chlorogenic Acids on HCV-Induced Liver Damage. Foods, 2024.
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