Como funciona a lista de transplante hepático no Brasil

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

Texto baseado em aula ministrada em 27/10/23 pelo Dr. Rodrigo Luiz Macacari, cirurgião de transplante de fígado do Instituto do Fígado Americas. O Dr. Macacari possui graduação em medicina pela Faculdade de Medicina de Marília – FAMEMA (2009), residência em cirurgia geral pela Casa de Saúde Santa Marcelina – SP (2011 – 2013) e residência em Cirurgia do Aparelho Digestivo no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo- HC FMUSP (2014 2016). Mestre em Ciências da Gastroenterologia pela Faculdade de Medicina da UPS (2019). Membro do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva (CBCD) e do Colégio Brasileiro de Cirurgia Hepato Pancreato Biliar.

O Sistema Nacional de Transplante (SNT) no Brasil segue os regulamentos descritos na Portaria 2.600, de 21 de outubro de 2009 e tem como objetivos manter um sistema com equidade, objetividade e transparência, levando em consideração que temos uma necessidade de órgãos muito maior do que a quantidade de doações. Equidade é diferente de igualdade, isso significa que na lista de transplante as regras foram elaboradas para reconhecer as muitas situações distintas dos receptores e aplicar um sistema mais justo. Essa lista se aplica a transplante de doador falecido apenas, já que não há necessidade de lista para transplante intervivos.

Em teoria, a lista de espera para o transplante de fígado é federal, mas cada Estado controla sua lista, com exceção do Estado de São Paulo, que tem duas listas, uma para a capital e outra para o interior.

Até 2009, as listas funcionavam como uma fila, sua posição dependia de quanto tempo estivesse no sistema. Só que algumas vezes a pessoa chegava no topo da lista e não precisava do transplante, enquanto que outras que realmente precisavam não sobreviviam até chegar a sua vez. A partir daí, a lista passou a ser separada por tipagem sanguínea (o sistema ABO, felizmente só precisamos desse grau de afinidade entre o doador e receptor no transplante de fígado) e classificada por um valor numérico, sendo esse baseado no cálculo de MELD-Na. A lista também considera o tempo de espera (cada dia pontua como 0,33 vezes o número de dias de espera na lista).

O MELD não foi criado para isso, mas para calcular o risco de óbito em portadores de cirrose que iriam realizar um procedimento chamado TIPS, mas observamos que funciona muito bem para organizar a lista de transplante.

O MELD-Na é um cálculo que fazemos levando em consideração a necessidade de hemodiálise, a função do fígado pela quantidade de bilirrubina e RNI, a função renal pela dosagem de creatinina e o estado geral da doença hepática com a dosagem de sódio, que cai quando a doença avança. Quando o receptor tem menos de 12 anos, o cálculo é um pouco diferente, leva em consideração a idade e chamamos de PELD. Esse valor é multiplicado por 3 para a lista, o que chamamos de “PELD ajustado”. No caso de adolescentes entre 12 e 18 anos, o MELD é multiplicado por 2 e chamado de “MELD ajustado”.

Ficha online para inclusão na lista de transplante de fígado. Essa ficha é preenchida pela equipe de transplante e consta não apenas identificação, tipo sanguíneo e valor do MELD, mas também causa da doença, se trata-se de caso especial e quais as condições aceitáveis do fígado (incluindo tamanho do fígado e outras condições).

É importante entender que o MELD não é um simples cálculo para colocar as pessoas em ordem de gravidade, é um modelo matemático que prediz a mortalidade em 3 meses. A lógica de escolher o momento do transplante do fígado é que o transplante é um procedimento não só caro, mas bastante agressivo e que está relacionado a uma mortalidade considerável (nos melhores centros, a sobrevida em 1 ano é de 90% e em 5 anos de 70%). Assim, a cirurgia é indicada quando o risco do tratamento é menor que o risco da evolução da doença do fígado, ou quando a perda de qualidade de vida é tão significativa que o risco é aceitável.

Alguns sistemas de saúde, como o dos Estados Unidos, consideram que o MELD acima de 15 já é o ponto em que vale a pena o transplante. Como fazemos menos transplantes (por muitas causas, mas principalmente pela falta de doações), a maioria dos grupos de transplante não coloca na lista com MELD nesse valor, geralmente só acima de 17 ou 18, pois não faz diferença colocar antes.

Algumas condições causam sintomas e perda de qualidade de vida sem uma relação direta com o MELD, e portanto acabariam sempre embaixo em uma lista que levasse em consideração apenas esse critério. Depois de muita discussão, optou-se por um sistema que reconhece situações especiais na lista de transplante.

Prurido intratável (da colangite biliar primária ou de outras colestases), carcinoma hepatocelular (em fase inicial), encefalopatia hepática intratável, colangite de repetição (da colangite esclerosante primária ou outras causas), ascite refratária e outras condições são consideradas situações especiais. Nesses casos, o receptor entra na lista como se tivesse um MELD de 20 (exceto na ascite refratária, que já entra como 29). Se não conseguir o transplante em 3 meses, o valor sobre para 24, e em 3 meses para 29. Em crianças até 12 anos em situações especiais, o PELD ajustado inicial é de 30, em 1 mês na lista vira 35.

Tudo na lista de transplante tem que ser bem documentado, e situações especiais exigem documentação extra e extremamente detalhada. Cada aspecto dessas situações tem que ser descrito em fichas específicas e encaminhadas, junto de exames e documentos comprobatórios, para a câmara técnica que os julga e aceita se estiver tudo em ordem.

No caso de transplante de fígado, não existem os passos 5, 6 e 7

Então, uma vez na lista, os exames de MELD/PELD e adicionais quando necessários precisam ser repetidos periodicamente para continuar no sistema. A equipe de transplante avisa os receptores nos primeiros lugares para aguardar a qualquer momento, pois se o fígado vai para o hospital e o primeiro da lista não pode receber por algum motivo, vai para o segundo.

Uma situação complexa que é discutida incessantemente é sobre o transplante de fígado e o consumo de álcool. A legislação brasileira especifica claramente que é necessário pelo menos 6 meses de abstinência alcoólica (absolutamente nada de álcool) para ser incluído na lista (independente se a doença do fígado foi causada pelo álcool). Isso é baseado no fato bem documentado que a recidiva de consumo de álcool após o transplante é muito maior (acima de 70%) em quem não ficou 6 meses sem antes da cirurgia. E que o consumo de álcool reduz a sobrevida do fígado transplantado. A discussão é se não deveríamos abandonar essa restrição considerando que o transtorno do abuso de álcool é uma doença e tem que ser tratada, assim como as hepatites virais e doenças autoimunes que podem retornar após o transplante. Talvez isso mude com o desenvolvimento de tratamentos mais eficazes para o alcoolismo.

Concluindo, a lista de transplante de órgãos no Brasil é transparente e os órgãos doados vão para receptores através de critérios objetivos e às vezes complexos com o objetivo de equidade. A demora em conseguir um órgão é resultado direto da falta de doadores, que pode ser melhorado com campanhas de conscientização, mas não por injustiça no sistema.