Hepatite pela Dengue

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

Dengue é uma infecção causada por 4 vírus da família Flavivirus, chamados de DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4, transmitidos principalmente pela fêmea do mosquito Aedes aegypti e, em menor grau, pelo Aedes albopictus.

Mosquito Aedes aegypti, que transmite a dengue (fonte).

A doença é extremamente comum em todos os países de zona tropical e subtropical, ameaçando portanto cerca de metade da população medial. Tipicamente ocorre principalmente nos meses quentes e chuvosos, mas no Brasil infelizmente é endêmico, o que significa que ocorre o ano inteiro piorando a casa ano. Até maio de 2024, o país possuía 4,7 milhões de casos prováveis da doença e os óbitos totalizaram 2,5 mil (fonte)!

Evolução dos casos de dengue nas Américas. A linha azul é a do Brasil (fonte)

A infecção tem um período de incubação (tempo da picada do mosquito até o início dos sintomas) de 3 a 14 dias. Os sintomas podem ser mínimos, mas podem ser intensos e fatais. Dividimos a doença em três fases: febril, crítica e de recuperação.

A fase febril dura de 2 a 7 dias e geralmente causa dor de cabeça (principalmente atrás dos olhos), febre, mal estar e dores intensas em todo o corpo. Pode ter ainda náuseas e vômitos, perda do apetite, diarreia e “vermelhidão” no corpo.

Depois da fase febril a maioria dos doentes passa direto para a fase de recuperação, mas alguns desenvolvem a fase crítica entre o 3o. e 7o. dias, que envolve dor abdominal intensa, vômitos persistentes, acúmulo de líquidos letargia/irritabilidade, hipotensão postural, hepatomegalia, sangramento de mucosa e aumento do hematócrito, causados pelo extravasamento de líquidos dos vasos.

Fases da dengue e suas correspondências nas alterações laboratoriais e quadro clínico. Fonte: World Health Organization – WHO (2009), com adaptações.

Até há poucos anos, classificávamos a dengue como clássica, dengue hemorrágica e síndrome do choque da dengue. Essa classificação, embora ainda apareça em alguns textos, foi abandonada principalmente porque confundia mais do que ajudava, já que passava a noção errada de que o sangramento seria sinal principal de gravidade da dengue, deixando passar os casos com choque, que são mais graves.

Hoje usamos a classificação do Ministério da Saúde brasileiro, que separa os pacientes em grupos A, B, C e D, do mais leve para o maus grave.

  • A: paciente com suspeita de dengue, sem sinais de alarme ou condições especiais;
  • B: paciente com suspeita de dengue, sem sinais de alarme mas com condições especiais;
  • C: paciente com diagnóstico de dengue e com sinais de alarme;
  • D: paciente com diagnóstico de dengue grave, apresentando choque, hemorragia ou disfunção orgânica.

O diagnóstico da dengue, dentro de período de epidemia, pode ser feito apenas pelo quadro clínico, sem necessidade de sorologia. Nos primeiros 5 dias de sintomas, as sorologias não tem validade pois ainda não há produção de anticorpos, portanto nessa fase solicita-se (se necessária) a pesquisa de antígeno viral. Depois do 6o. dia, começa a surgir o anticorpo do tipo IgM, que indica infecção recente e é substituído aos poucos pelo IgG, que confere imunidade contra o vírus (DENV-1, DENV-2, DENV-3 ou DENV-4) e pequena imunidade cruzada em relação aos demais. Isso não é exatamente bom, pois se uma pessoa tem imunidade contra um subtipo e entra em contato com outro pode desenvolver uma reação imunológica mais violenta com mais risco de complicações.

Fluxograma atual para avaliação e tratamento da dengue (baixar).

Infelizmente, há vacina mas não tratamento específico para o vírus. Assim, o tratamento é basicamente de suporte, com reposição de líquidos, albumina e plaquetas conforme necessidade, segundo protocolo do Ministério da Saúde (acima).

A elevação de enzimas hepáticas ocorre em até 50-90% dos portadores de dengue, geralmente com pequeno aumento e sem significado clínico. Mas em casos graves pode chegar a 10 vezes o valor normal, correspondendo a inflamação severa do órgão, o que pode levar a insuficiência hepática (em cerca de 0,35% dos casos totais de dengue).

Fisiopatogenia da hepatite pela dengue (adaptada de fonte)

A lesão hepática na dengue é causada por três mecanismos básicos: ação direta do vírus contra os hepatócitos, lesão pelo sistema imunológico hiperativado com aumento de radicais livres e falta de oxigênio no fígado causado pelo extravasamento de líquidos do plasma e queda da pressão. Assim, a maioria dos casos de hepatite severa pela dengue está relacionada à síndrome de choque da dengue, que leva a óbito principalmente por insuficiência de múltiplos órgãos. A hepatite aguda grave está relacionada a alta mortalidade (cerca de 50%), podendo indicar necessidade de transplante de fígado.

Ictericia

Os sinais e sintomas mais indicativos de hepatite pela dengue são icterícia (pele e olhos amarelados), prurido (coceira), dor abdominal, vômitos, perda de apetite, colúria (urina enegrecida), hematomas e hepatomegalia (aumento do fígado). Na insuficiência hepática fulminante, pode surgir distúrbio da coagulação e encefalopatia hepática. Em relação aos exames laboratoriais, observa-se geralmente aumento de transaminases (AST e ALT) com valores abaixo de 100 mg/dL, com enzimas canaliculares (fosfatase alcalina e gama-glutamil transferase) normais. O padrão usual é de aumento de AST superior ao de ALT, como era de se esperar considerando que o AST está presente em outros órgãos, especialmente em hemácias e músculos, estruturas também afetadas pela dengue. A bilirrubina e o RNI, quando aumentam, podem indicar evolução para insuficiência hepática.

Biópsia mostrando intenso edema da parede da vesícula biliar (fonte). O espessamento das paredes da vesícula biliar é comum em pacientes com hepatites agudas, incluindo a pela dengue (ocorre entre 5-8% de todos os casos de dengue). Como dor abdominal e vômitos são comuns na dengue e os exames de imagem (tomografia, ultrassonografia, ressonância) geralmente apresentam esse achado, é comum que pacientes, familiares e muitas vezes a equipe médica achem que se trata de colecistite aguda e precise operar.

Quando há sinais de doença hepática importante, é necessário descartar outras condições que podem afetar o fígado, particularmente outras hepatites virais agudas (hepatites A, B, E, pelo citomegalovírus, Epstein-Barr e toxoplasmose) e hepatite autoimune. Outra possibilidade que deve ser sempre levantada é a intoxicação pelo paracetamol. Esse medicamento é geralmente prescrito (e recomendado pelo Ministério da Saúde!) para o tratamento da dor e da febre na dengue, como alternativa à dipirona. Geralmente considera-se que o consumo de mais de 4 gramas em 24 horas em adultos (ou 5 doses em crianças) seja potencialmente tóxico. Se a pessoa tiver doença hepática (incluindo a hepatite pela dengue) ou consumir álcool no mesmo dia, a dose tóxica pode ser menor. Uma dose de até 2 gramas por dia é considerada segura. Antiinflamatórios, que também podem causar lesão ao fígado, não devem ser prescritos em casos de suspeita ou diagnóstico de dengue.

O paracetamol é uma das principais causas de insuficiência hepática aguda em todo o mundo. Além dos casos de suicídio (já que é um medicamento comum em domicílios), o consumo abusivo pode ocorrer nos casos de febre alta e dor (como é o caso da dengue) e também nos quadros gripais, quando o doente toma paracetamol isolado para os sintomas e também toma sem saber em “multigripais” e xaropes que contém o medicamento.

Os principais indícios de evolução para insuficiência hepática aguda grave e risco de óbito são plaquetopenia abaixo de 50.000, aumento de transaminases acima de 1.000 dentro dos primeiros 5 dias de sintomas, escore MELD ≥ 15 e RNI ≥ 1,5. A doença tende a ser mais grave em crianças, menores de 40 anos e portadores de cirrose hepática.

Biópsia hepática mostrando (na área central da imagem) intensa congestão de sangue (estruturas de vermelho mais intenso) e processo inflamatório relativamente leve em caso de dengue com hepatite fulminante (fonte).

Não há um tratamento definido para a hepatite pela dengue. Há propostas para o uso de concentrados de hemácias para aumentar o oxigênio disponível no fígado e de acetilcisteína endovenosa para reduzir radicais livres, agir como antioxidante e promover vasodilatação, mas nenhum desses tratamentos tem benefício comprovado. Em casos com falência hepática isolada há a possibilidade de transplante hepático, com diversos casos de sucesso, mas os critérios de indicação e a eficácia desse tratamento na hepatite pela dengue ainda precisam ser bem estabelecidos.

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