Essa semana as doutoras Manuela Merli e Lucia Lapenna da Universidade de Roma publicaram um breve artigo no site da UEG (United European Gastroenterology) sobre os principais erros na nutrição de pacientes portadores de doenças crônicas do fígado, particularmente cirrose hepática.

A nutrição é uma questão importante durante o acompanhamento do cirróticos por diversos motivos. O principal deles é que, como o fígado está diretamente envolvido no processo de controle e produção de proteínas, açúcares e gorduras, o cirrótico tende a evoluir com desnutrição. Essa desnutrição é ainda acelerada porque, como o fígado perde a capacidade de manter a quantidade adequada de glicose entre as refeições, o jejum é muito mais deletério . Um jejum de 12 horas em portador de cirrose, por exemplo, é o equivalente a uma pessoa normal em jejum por 3 dias. Assim o organismo fica como se estivesse em constante estado de fome e consome especialmente massa muscular para se manter, e essa perda muscular é o que chamamos de sarcopenia.
A sarcopenia, além de ser um problema grave em si (com queda da qualidade de vida e limitação à atividade física) gera ainda outra complicação: como o fígado na cirrose avançada vai perdendo a capacidade de eliminar certas toxinas, particularmente amônia, elas vão atrapalhando o funcionamento do cérebro, uma consequência grave da cirrose chamada encefalopatia hepática.

Acontece que, além do fígado, os músculos também são responsáveis em eliminar o excesso de amônia. Com a falta de massa muscular no sarcopênico, a encefalopatia surge com mais facilidade e fica mais difícil de controlar.
Tendo tudo isso em mente, as doutoras elaboraram uma lista de 10 erros que devem ser evitados:
1o. erro: basear sua avaliação nutricional em peso e IMC
Esse é fácil de entender. Como o portador de cirrose costuma apresentar excesso de líquidos, especialmente os com ascite, peso ou IMC (índice de massa corporal, calculado dividindo o peso pela altura ao quadrado) não servem para avaliar o estado nutricional. Isso é ainda mais importante quando vai se avaliar a massa muscular, pois nenhum dos dois mostra a diferença de peso pela massa muscular, gordura ou água. Há várias ferramentas muito melhores para isso, como medidas antropométricas, bioimpedância, densitometria de composição corporal (DEXA), além da avaliação da força muscular.

2o. erro: não explicar a importância do estado nutricional para os pacientes
Esse também é lógico: quanto mais o paciente sabe sobre a sua doença e suas possíveis complicações melhor. Entender como a ascite surge ajuda a aderir na redução de sal na dieta. Conhecer o risco e as características do surgimento do hepatocarcinoma ajudam a lembrar de retornar a cada 6 meses para realizar exames de rastreamento. Compreender a encefalopatia hepática ajuda a prevenir fatores desencadeantes e a reconhecer os sintomas ainda na fase inicial. Do mesmo modo, explicar como a cirrose altera o metabolismo e facilita a desnutrição e a sarcopenia ajuda a seguir uma dieta adequada e evitar longos períodos de jejum.
3. erro: subestimar a prevalência de desnutrição e sarcopenia
Essas não são complicações raras, 30 a 70% dos portadores de cirrose apresentam sarcopenia. Só esse dado já justifica a avaliação nutricional periódica desses pacientes, não só quando as complicações se tornam óbvias.
4o. erro: recomendar restrições dietéticas desnecessárias
Uma coisa deve sempre ficar clara: nenhum alimento, fora o álcool, causa lesão no fígado. Mesmo assim médicos não especialistas em Hepatologia e outros profissionais de saúde frequentemente prescrevem dietas restringindo alimentos. Não é incomum pacientes chegando no consultório desnutridos e orientados que só podiam comer “arroz e água de batata” ou alguma bobagem semelhante. Isso só leva a uma desnutrição ainda mais severa e piora a doença.
5o. erro: prescrever dieta com baixa proteína em portadores de encefalopatia hepática
Nesse ponto temos que assumir parte da culpa. Como parte da encefalopatia hepática é causada pela digestão de proteínas, até há poucos anos a recomendação geral era a de reduzir proteínas da dieta. Mas desde então aprendemos que a sarcopenia decorrente dessa dieta não só piora a encefalopatia como também torna muito mais difícil controlar essa complicação da cirrose.
6o. erro: deixar de oferecer atendimento multidisciplinar
A cirrose hepática é uma doença grave, que pode levar a múltiplas complicações e os pacientes se beneficiam de uma estratégia multidisciplinar, envolvendo diversas especialidades médicas, odontologista, nutricionista e outros profissionais de saúde.

7o. erro: esquecer de envolver o cuidador
E não só o cuidador, como toda a família. Cirróticos com doença avançada frequentemente dependem do apoio ou do cuidado dos familiares, que podem ajudar na dieta e, particularmente, são os primeiros a notar sinais de encefalopatia hepática. Mas para isso precisam saber o que fazer, o que significa que tem que participar de consultas e compartilhar informações.
8o. erro: deixar de mudar a dieta quando o quadro clínico muda
Essa é outra questão lógica: doenças pioram e melhoram, ou podem apresentar complicações diferentes com o tempo. Cada nova complicação pode exigir nova avaliação nutricional e dieta. Por exemplo, a restrição de sódio é benéfica no paciente com ascite, mas pode prejudicar os demais. Além disso, necessidades nutricionais mudam com o tempo. Pode ser necessária dieta para emagrecer no paciente obeso (particularmente com esteato hepatite), ou controlar gorduras e carboidratos em dislipidêmicos e diabéticos, mas se a dieta não for corrigida quando essas situações forem controladas pode levar a desnutrição e sarcopenia.
9o. erro: esquecer de levar em conta a sarcopenia antes do transplante hepático
Mesmo em pacientes com o mesmo MELD ou MELDNa (classificação que controla o lugar na fila de espera para transplante), os que tem sarcopenia são mais graves dos que os bem nutridos e deveriam estar na frente. Isso sem falar que a sarcopenia deve ser resolvida, se possível, antes da cirurgia, pois traria melhor resultado.

10o. erro: deixar de considerar sarcopenia na decisão em colocar TIPS
TIPS (shunt intrahepático transjugular) é um procedimento radiológico para reduzir drasticamente a hipertensão portal em pacientes com ascite refratária ou hemorragia por varizes esofago gástricas de difícil controle. Mas como desvia sangue direto dos intestinos para a circulação geral sem passar pelo fígado, a sua principal complicação é desenvolver encefalopatia hepática. Como sabemos que a sarcopenia é um fator que sozinho pode levar a encefalopatia e torna ou seu controle mais difícil, devemos avaliar bem isso antes de decidir pela realização de TIPS.
CONCLUSÕES
Mantive o termo “erros” do artigo original, mas poderia muito bem ter trocado para “falhas” ou “enganos”, pois muitas vezes não se tratam de erro profissisonal, mas sim detalhes que podem passar despercebidos, mudanças de conceito que não especialistas não foram informados ou condutas inadequadas causadas por limitações do serviço de saúde. O objetivo desse artigo não é “apontar dedos”, mas chamar a atenção de possíveis melhoras no atendimento de portadores de cirrose hepática, que é uma doença muito complexa e que passa por episódios de complicações graves, que facilitam concentrar em um aspectos da doença e deixar passar outros.
Finalmente, de que vale apontar erros sem orientar o que é correto ? A dieta do cirrótico deve ser avaliada caso a caso, mas algumas orientações são comuns e consenso entre especialistas de todo o mundo:
- A recomendação calórica é de 30-35 kcal por kg de peso ideal
- A recomendação de proteínas é de 1,2-1,5 g por kg de peso ideal
- Recomendar 4 a 6 refeições distribuídas ao longo do dia com lanche antes de dormir para reduzir o tempo de jejum
- Recomendar dieta rica em vegetais e laticínios (se não tiver intolerância a lactose, claro)
- Avaliar periodicamente a necessidade de suplementos e micronutrientes (vitaminas e outros)
- Considerar dieta enteral ou parenteral em pacientes severamente desnutridos que não conseguem se alimentar por via oral
- Tratar portadores de sarcopenia com dieta e atividade física adequada
- Tratar pacientes obesos com dieta hipocalórica, mas hiperproteica para emagrecer mas manter massa muscular, e orientar mudanças no estilo de vida
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