Evolução do fígado

Dr. Stéfano G. Jorge

O fígado é hoje o maior órgão interno do ser humano e cumpre mais de 500 funções diferentes: ele transforma os nutrientes que chegam pelo intestino em energia e proteínas, neutraliza toxinas e medicamentos, produz bile para a digestão das gorduras, participa do controle de hormônios, atua como peça-chave do sistema imunológico e ainda tem uma capacidade de regeneração celebrada até mesmo em mitos antigos.

“Nada em biologia faz sentido, a não ser sob a luz da evolução.” Theodosius Dobzhansky, 1973

Entender de onde o fígado surgiu e como chegou até o que temos hoje não é apenas uma curiosidade biológica. Esse conhecimento nos ajuda a compreender melhor doenças modernas e até sintomas cotidianos. Por exemplo, o acúmulo de gordura no fígado — muito comum hoje por conta de dietas ricas em calorias — faz sentido quando lembramos que, para nossos ancestrais, armazenar energia era uma vantagem de sobrevivência. Da mesma forma, a ligação do fígado com o intestino e com a imunidade explica por que doenças hepáticas frequentemente causam cansaço, infecções ou distúrbios em órgãos distantes.

Quando o fígado está inflamado ou responde a infecções ou inflamação em outros órgãos, libera substância que causam, entre outras coisas, fadiga crônica (Robinson, 2016).

Assim, olhar para o fígado com as lentes da evolução é, ao mesmo tempo, um exercício de ciência e de medicina prática: é compreender que nossas vulnerabilidades atuais carregam a marca da nossa história biológica.

Quando olhamos para a evolução dos animais, percebemos que o fígado, como conhecemos hoje, não apareceu de uma só vez. Ele foi sendo moldado a partir de estruturas mais simples que já cumpriam algumas de suas funções.

Nos moluscos (como caracóis e polvos) e em muitos crustáceos (caranguejos, camarões), existe um órgão chamado hepatopâncreas. Apesar do nome complicado, ele é basicamente uma glândula que junta características do fígado e do pâncreas dos vertebrados. O hepatopâncreas ajuda a produzir e secretar enzimas digestivas, quebrar nutrientes em moléculas menores, armazenar energia em forma de gordura e até neutralizar substâncias tóxicas presentes na água ou nos alimentos. Ou seja, já é uma espécie de “laboratório interno” multifuncional.

Diagrama do camarão Litopenaeus vannamei, mostrando o hepatopâncreas, ou glândula digestiva (Araújo, 2024).

Um segundo passo importante na história foi dado pelo anfioxo, um pequeno animal marinho que lembra um peixe primitivo, mas na verdade é um parente distante nosso, do grupo dos cefalocordados. Ele possui o chamado ceco hepático: uma pequena bolsa ligada ao intestino, que funciona como órgão auxiliar da digestão. Apesar de simples, esse ceco já apresenta células que lembram muito as do fígado dos vertebrados — capazes de produzir enzimas, armazenar nutrientes e até realizar defesas contra microrganismos. Muitos cientistas consideram o ceco hepático o “embrião evolutivo” do fígado verdadeiro.

Ceco hepático do anfioxo (Zhang, 2023)

Essas formas iniciais mostram como a natureza foi testando soluções para problemas básicos da vida animal: como obter energia dos alimentos, como lidar com toxinas e como equilibrar o metabolismo. A diferença é que, nos invertebrados, essas tarefas estavam divididas em vários órgãos pequenos, enquanto, nos vertebrados, elas foram concentradas em um único órgão central: o fígado.

Do ponto de vista médico, essa história ajuda a explicar por que o fígado humano tem tantas funções acumuladas: digestão, armazenamento, detoxificação e defesa imunológica. Ele é, na prática, a soma de vários papéis que a evolução reuniu em um só lugar.

Com o surgimento dos primeiros vertebrados aquáticos, como os peixes primitivos, o fígado deixou de ser apenas uma extensão do intestino e se tornou um órgão definido, com localização, irrigação sanguínea e funções próprias. Essa transformação não foi ao acaso: ela foi “programada” por um conjunto de genes muito antigos, que ainda hoje atuam em todos os vertebrados. Em outras palavras, existe um verdadeiro manual de instruções conservado pela evolução, que garante que, em embriões de peixes, anfíbios, répteis, aves ou humanos, o fígado sempre se forme a partir do mesmo tecido — o endoderma do intestino anterior.

Nos peixes, o fígado já aparece como um órgão volumoso, responsável por várias tarefas críticas. Uma das mais importantes era a produção de bile, um líquido que ajuda a digerir as gorduras da dieta. Nos peixes mais antigos, essa bile continha álcoois biliares C27, moléculas relativamente simples. Apesar disso, já cumpriam a função de emulsificar gorduras — fundamental para um animal que dependia de aproveitar ao máximo os nutrientes da alimentação aquática.

Estrutura química do colesterol (A) e das três classes principais de sais biliares: álcoois biliares C27 (B),
ácidos biliares C 27 (C) e ácidos biliares C 24 (D) (Hofmann, 2010). Cada classe está relacionada a ambientes e dietas diferentes para o qual o organismo foi adaptado.

Com o passar do tempo, em répteis, aves e depois nos mamíferos, essas moléculas foram se tornando mais sofisticadas, transformando-se em ácidos biliares C24. Essa mudança bioquímica parece pequena, mas trouxe uma enorme vantagem: tornou a digestão das gorduras mais eficiente, permitindo maior absorção de energia. Foi uma inovação essencial em ambientes onde nem sempre havia abundância de alimento.

Variações na composição dos sais biliares dentro das classes de vertebrados (Hofmann, 2010). Observe que à medida que aumenta a complexidade do organismo, ele deixa de ter apenas álcoois C27 para ter exclusividade de ácidos biliares C24. No entanto, a presença de defeitos genéticos pode alterar a composição desses nos humanos, como na síndrome de Zellweger, onde há acúmulos de ácidos biliares C27 (Hoffmann, 1999).

Embora o fígado seja um órgão universal entre os vertebrados, sua forma, tamanho e funções específicas variam muito de acordo com as necessidades de cada espécie. Essa diversidade é um reflexo direto da evolução e da adaptação ao ambiente.

  • Histologia: o hepatopâncreas é uma glândula composta por túbulos simples revestidos por células com funções digestivas, secretoras e fagocíticas. Não há organização lobular nem circulação dupla.
  • Histologia: tecido epitelial simples, com células semelhantes a enterócitos, mas já expressando genes equivalentes a hepatócitos (ex.: HNF, FoxA).
  • Implicação clínica: o anfioxo mostra como os hepatócitos surgiram a partir de células intestinais, explicando a plasticidade do fígado humano em regeneração e transdiferenciação (ductos → hepatócitos, e vice-versa).

O fígado dos peixes geralmente é muito volumoso em relação ao corpo. Ele não serve apenas para digestão, mas também para armazenar energia em forma de gordura e substâncias especiais.

  • Nos tubarões, o fígado é tão grande que pode corresponder a um quarto do peso corporal. Além de acumular energia, ele produz compostos oleosos (como o esqualeno), que ajudam o animal a manter a flutuabilidade no mar, compensando a ausência de bexiga natatória.
  • Nos peixes ósseos, o fígado é importante para metabolizar proteínas e açúcares e também para lidar com o excesso de amônia, já que eles vivem em contato direto com a água.
  • Histologia: não apresentam lóbulos clássicos. O fígado é constituído por cordões de hepatócitos dispostos irregularmente, separados por sinusoides. As células de Kupffer estão menos organizadas. A ausência de lóbulos regulares nos peixes ajuda a entender que a arquitetura lobular em mamíferos não é necessária para sobrevivência, mas aumenta a eficiência metabólica. Isso explica por que em condições de cirrose avançada (desorganização lobular), ainda existe função parcial.
  • A vascularização já é dupla (artéria hepática + veia porta), mas rudimentar.
Ao invés vez de usar uma bexiga natatória como a maioria dos peixes, os tubarões contam com um fígado enorme, repleto de óleo. Esse óleo é menos denso que a água e permanece flutuante mesmo sob alta pressão, permitindo que o tubarão nade em diferentes profundidades sem afundar. Algumas espécies têm até 110 litros de óleo no fígado!

Nos anfíbios, como sapos e rãs, o fígado já apresenta três lobos principais, um passo em direção à organização encontrada em répteis, aves e mamíferos. A posição do fígado, próxima ao coração e ao pulmão rudimentar, reflete a transição evolutiva para a vida terrestre. Ele é proporcionalmente menor do que nos peixes, mas cumpre funções centrais:

  • Produção de bile, armazenada na vesícula biliar e liberada no intestino para a digestão.
  • Regulação do metabolismo energético, importante porque anfíbios vivem parte do tempo na água e parte em terra.
  • Histologia: começam a aparecer lóbulos hepáticos rudimentares, com cordões celulares mais organizados ao redor de vênulas centrais, mas sem a regularidade vista em mamíferos. A circulação dupla já é mais organizada.

Nos répteis, como lagartos e tartarugas, o fígado é mais compacto e lobulado. É mais adaptado ao ambiente terrestre, funcionando como um “estoque de sobrevivência”.

  • Possui geralmente dois lobos principais, sendo o direito maior que o esquerdo.
  • A vesícula biliar está quase sempre presente e tem papel crucial na digestão de insetos e presas ricas em gordura.
  • Como vivem em ambientes áridos, o fígado também ajuda a controlar melhor o metabolismo hídrico e a armazenar reservas energéticas para períodos de escassez.

O fígado das aves é proporcionalmente grande em relação ao corpo e dividido em dois lobos bem marcados.

  • Sua função central é sustentar o alto gasto de energia do vôo, metabolizando rapidamente açúcares e gorduras.
  • Curiosamente, algumas aves não possuem vesícula biliar (ex.: pombos, papagaios e aves não voadoras como avestruzes). Isso mostra que a vesícula, embora útil, não é essencial em todas as espécies.
  • O fígado também participa da formação de proteínas específicas para penas e ovos.
  • Histologia: lóbulos mais definidos, mas com particularidades: maior proporção de hepatócitos com vacúolos lipídicos, refletindo metabolismo energético intenso do vôo.
Aves migratórias (como esses gansos canadenses) enfrentam longos voos sem acesso a alimento. Para isso, o fígado acumula grandes quantidades de gordura, que será convertida em energia ao longo do trajeto. Isso porque gordura é mais leve que carboidratos e proteínas e estoca mais energia. O fígado dessas aves consegue modular o metabolismo de forma extrema: antes da migração, ele aumenta a produção de enzimas que quebram lipídios; durante o voo, ele reduz funções menos essenciais para economizar energia; e ao final, retoma o equilíbrio para recuperação muscular e imunológica. Há ainda indícios de que o fígado também influencia o ritmo circadiano e a liberação de hormônios ligados à migração, como a melatonina. Ou seja, ele pode ajudar a regular o “relógio interno” que diz à ave quando é hora de partir.

Nos mamíferos, o fígado atinge sua forma mais sofisticada.

  • É organizado em lóbulos microscópicos, cada um com sua própria rede de vasos sanguíneos e células.
  • Recebe sangue de duas fontes diferentes: a artéria hepática (sangue rico em oxigênio) e a veia porta (sangue vindo do intestino, cheio de nutrientes e toxinas).
  • Essa arquitetura garante uma triagem eficiente do que chega da alimentação antes de circular pelo corpo.
  • Histologia: aparece a organização clássica em lóbulos hexagonais, com:
    • Hepatócitos em cordões radiados.
    • Sinusoides revestidos por células endoteliais fenestradas.
    • Células de Kupffer (imunológicas).
    • Células estreladas de Ito (armazenam vitamina A, papel central na fibrose).
    • Tríades portais (veia porta, artéria hepática, ducto biliar).

O fígado humano é formado por quatro lobos visíveis externamente (direito, esquerdo, quadrado e caudado), mas funcionalmente é dividido em oito segmentos independentes (sistema de Couinaud). Essa divisão é crucial para cirurgias, pois permite retirar partes do fígado sem comprometer o órgão inteiro.
Além da digestão, o fígado humano atua como:

  • Central de comando do metabolismo: regula açúcares, gorduras e proteínas.
  • Filtro de toxinas: remove substâncias nocivas do sangue.
  • Órgão imunológico: abriga células de defesa que protegem contra microrganismos vindos do intestino.
  • Glândula endócrina: produz hormônios e mensageiros químicos que afetam todo o corpo.

Os avanços na histologia do fígado a partir dos mamíferos tem implicações clínicas importantes:

  • A presença das células estreladas explica a fibrose hepática e a progressão para cirrose.
  • A organização em lóbulos e segmentos permite a cirurgia hepática segmentar e o transplante parcial.
  • A arquitetura especializada é eficiente, mas vulnerável: quando desorganizada (cirrose), perde-se o fluxo laminar e surgem complicações como hipertensão portal e encefalopatia.
Classificação de Couinaud para segmentos hepáticos. À esquerda, visão anterior, e à direita, visão posterior.

Todos os animais precisam lidar com o excesso de nitrogênio, produto do metabolismo das proteínas.

  • Peixes de água doce: liberam a amônia diretamente pelas brânquias (estratégia chamada amoniotelia). Como a água dilui a amônia, essa solução é viável.
  • Peixes cartilaginosos (tubarões) e alguns anfíbios: convertem parte da amônia em ureia, que também ajuda na regulação osmótica — é o caso dos tubarões, que usam a ureia para manter o equilíbrio de sais no mar.
  • Mamíferos: desenvolveram o ciclo da ureia, realizado quase exclusivamente no fígado. Esse processo consome energia, mas permite eliminar nitrogênio em forma menos tóxica, ideal para a vida terrestre onde a água não é abundante.

Na prática clínica: quando o fígado falha (hepatite fulminante, cirrose avançada), o ciclo da ureia entra em colapso e a amônia se acumula no sangue, causando encefalopatia hepática.

O fígado também é um órgão do sistema de defesa. Sua evolução foi guiada pelo fato de receber sangue vindo do intestino, rico em nutrientes mas também em bactérias e toxinas.

  • Para não reagir de forma exagerada a cada refeição, o fígado desenvolveu uma tolerância seletiva: aceita partículas alimentares inofensivas, mas responde a microrganismos perigosos.
  • Isso é feito por células especializadas, como as células de Kupffer (macrófagos residentes), que “patrulham” o sangue da veia porta, e os linfócitos especiais (NKT, MAIT), que equilibram tolerância e resposta rápida.

O fígado é famoso por sua capacidade de regeneração, que tem raízes profundas na evolução.

  • Peixes e anfíbios: podem regenerar por completo grandes porções do fígado, às vezes usando células dos ductos biliares para substituir hepatócitos.
  • Mamíferos: possuem regeneração baseada principalmente na divisão dos próprios hepatócitos. A resposta é rápida e eficiente, mas limitada se houver inflamação crônica ou fibrose.
  • Essa plasticidade celular é um traço herdado do desenvolvimento embrionário, onde as mesmas células progenitoras podem dar origem tanto a hepatócitos quanto a células dos ductos.
A regeneração epimórfica (regenerar caudas e membros, por exemplo) é característica de anfíbios e répteis, mas está ausente em aves e mamíferos. A regeneração do fígado ocorre em todas as classes de vertebrados; no entanto, o maquinário molecular aprimorado presente nos mamíferos permite uma regeneração otimizada do fígado em comparação com os vertebrados inferiores. Esse maquinário envolve molecular como C3, TNF, IL-6, TGF-β, fator de crescimento de fibroblastos (FGF) e até fosfolipídios (PL) e colesterol (CHOL). (Delgado-Coelho, 2021).

Na prática: isso explica por que uma hepatectomia parcial em humanos pode ser bem tolerada (o fígado se regenera em semanas), mas também por que essa regeneração falha em contextos de cirrose, quando o fígado não tem mais condições de exercer essa função.


Outra função adaptada ao ambiente foi a capacidade de guardar energia para tempos de escassez.

  • Nos tubarões e focas, o fígado é um enorme reservatório de lipídios.
  • Em aves migratórias, o fígado acumula gordura antes de longos voos.
  • Em humanos, esse mecanismo de armazenamento funciona como “seguro metabólico”, mas hoje, em tempos de excesso alimentar, se manifesta como esteatose hepática.

A história evolutiva do fígado ajuda a entender por que ele é vulnerável a várias doenças atuais. Muitas condições que hoje vemos como “patológicas” são, na verdade, efeitos colaterais de adaptações antigas que foram vantajosas em outros contextos.

Os ácidos biliares surgiram para facilitar a digestão de gorduras, mas ao longo da evolução ganharam também papel de hormônios. Eles interagem com receptores em diferentes tecidos, regulando metabolismo, inflamação e até a função da pele e do sistema nervoso.

  • Em situações de colestase (quando a bile não consegue fluir), os ácidos biliares se acumulam no sangue.
  • Esse excesso ativa receptores em fibras nervosas e na pele, gerando o sintoma de prurido intenso, tão característico de doenças como a colangite biliar primária (CBP).
O prurido (coceira) é um sintoma comum em doenças hepáticas, principalmente as que causam colestase (acúmulo de bile). No caso da colangite biliar primária, pode ser a principal causa da perda de qualidade de vida.

O incômodo da coceira é, portanto, consequência direta de um sistema que evoluiu para ter múltiplas funções além da digestão.

O fígado sempre teve a capacidade de armazenar energia em forma de gordura, porque em ambientes naturais a comida era escassa e intermitente. Esse estoque funcionava como uma espécie de seguro contra períodos de fome.

Todo fígado tem gordura, mas quando essa ultrapassa 5% chamamos de esteatose. Se esse processo persiste, as células ficam cada vez mais abauladas, até causando aumento do volume e alteração da coloração do órgão.
  • Em animais como tubarões ou focas, esse acúmulo é vital para a sobrevivência.
  • Em humanos modernos, porém, com excesso de calorias e pouca atividade física, esse mesmo mecanismo leva ao acúmulo excessivo de gordura hepática, causando a esteatose hepática.

Do ponto de vista evolutivo, trata-se de uma desadaptação: um mecanismo útil em ambientes hostis, mas prejudicial no mundo atual de abundância alimentar.

Por estar em contato constante com substâncias vindas do intestino (nutrientes, bactérias, toxinas), o fígado precisou evoluir um perfil de tolerância imunológica. Ele não pode reagir agressivamente a cada refeição, mas deve estar pronto para defender o corpo contra infecções.

  • Esse equilíbrio fez do fígado um órgão relativamente tolerante, o que explica a baixa taxa de rejeição em transplantes hepáticos.
  • Mas essa mesma característica facilita a persistência de vírus crônicos, como o da hepatite B.
  • Além disso, em alguns casos o equilíbrio se perde e o próprio sistema imunológico passa a atacar o fígado, resultando em doenças como a hepatite autoimune ou a colangite biliar primária.
Na hepatite B, pode haver uma longa fase chamada de “imunotolerância”, que pode durar até 10 a 30 anos, onde o vírus se multiplica livremente sem desencadear praticamente nenhuma resposta do sistema imunológico. Isso é mais comum quando a pessoa é contaminada ao nascimento ou nos primeiros anos de vida

Aqui vemos um exemplo clássico da evolução: o mesmo mecanismo que nos protege diariamente também pode, em certos contextos, favorecer a doença.

Na cirrose, a arquitetura do fígado fica distorcida, prejudicando tanto o metabolismo quanto a função imunológica.

  • Essa fragilidade tem origem no fato de que o fígado sempre atuou como um “filtro de contato com o ambiente intestinal”.
  • Quando perde essa função, microrganismos e toxinas do intestino conseguem alcançar a circulação, aumentando o risco de infecções graves como a peritonite bacteriana espontânea.

Mais uma vez, trata-se de um ponto fraco herdado de sua função evolutiva original: ser a barreira entre o intestino e o resto do corpo.

Embora o fígado humano seja capaz de regeneração parcial, essa função foi sendo moldada para lesões agudas e temporárias, comuns em ambientes naturais (infecções, toxinas alimentares, traumas).

  • No entanto, no mundo moderno, a principal agressão é crônica (álcool, obesidade, hepatites virais persistentes).
  • Nessas condições, o processo regenerativo se esgota e dá lugar à fibrose e à cirrose.
A capacidade de regeneração do fígado é literalmente lendária (veja a lenda de Prometeu). Em estudo onde foi retirado 2/3 do fígado (cirurgia que pode ser realizada após trauma ou para retirada de tumores), observou-se que o processo de regeneração começa 5 minutos após o procedimento, e o fígado humano recupera o seu peso anterior entre 8 e 15 dias.

Evolutivamente, infelizmente o fígado não está preparado para lidar com agressões contínuas de longo prazo.

Uma das funções mais sofisticadas do fígado humano é o ciclo da ureia, que permite transformar o excesso de amônia (um subproduto tóxico da digestão de proteínas) em ureia, facilmente eliminada pela urina.

Esse processo não surgiu de repente:

  • Peixes de água doce podiam eliminar amônia diretamente pelas brânquias, pois estavam cercados de água que diluía essa substância.
  • Peixes cartilaginosos e anfíbios começaram a converter parte da amônia em ureia, usando-a também para regular a pressão osmótica no corpo.
  • Mamíferos, vivendo em ambientes terrestres, não podiam se dar ao luxo de perder tanta água. Assim, o fígado desenvolveu um ciclo bioquímico altamente eficiente para transformar amônia em ureia, eliminando-a sem intoxicar o organismo. Esse mecanismo foi crucial para a adaptação à vida fora d’água.

No entanto, esse ponto forte evolutivo se transforma em ponto fraco quando o fígado adoece:

  • Em situações como cirrose descompensada ou hepatite fulminante, o fígado perde a capacidade de realizar o ciclo da ureia.
  • A amônia então se acumula no sangue, atravessa a barreira hematoencefálica e afeta diretamente o sistema nervoso central.
  • O resultado clínico é a encefalopatia hepática: confusão mental, desorientação, fala arrastada, tremores (flapping) e, em casos graves, coma.
A encefalopatia hepática é um dos sintomas mais graves da falência do fígado

Assim, algo que surgiu como uma adaptação essencial para a sobrevivência terrestre se torna, em contextos de doença, um dos problemas mais dramáticos e perigosos para os pacientes.

O fígado humano não é apenas um órgão complexo: ele é o resultado de milhões de anos de adaptações que começaram com estruturas simples nos invertebrados e culminaram em uma das centrais metabólicas mais sofisticadas do corpo humano.

Sua história mostra como a evolução funciona como uma engenharia acumulativa:

  • Nos invertebrados, surgiu como uma glândula digestiva multifuncional.
  • Nos peixes, tornou-se um órgão volumoso, capaz de metabolizar nutrientes e armazenar energia.
  • Nos anfíbios e répteis, ganhou organização em lóbulos e se consolidou como centro de metabolismo e digestão.
  • Nas aves, adaptou-se ao vôo, com metabolismo acelerado e flexibilidade anatômica (até a ausência de vesícula em algumas espécies).
  • Nos mamíferos, incorporou uma rede vascular complexa, dupla circulação sanguínea e lóbulos microscópicos altamente eficientes.
  • No ser humano, atingiu o auge da complexidade: um órgão que integra digestão, metabolismo, imunidade, regulação hormonal e até regeneração.

Essa longa trajetória explica tanto a versatilidade quanto a fragilidade do fígado. Ele é multifuncional porque carrega a herança de muitas soluções biológicas reunidas em um só lugar. Mas é vulnerável porque continua a carregar limitações herdadas do passado: a tendência a acumular energia em excesso, a imunotolerância que pode favorecer infecções crônicas, a regeneração eficiente em crises agudas mas insuficiente em agressões crônicas.

Conhecer como o nosso organismo evoluiu dá espaço para uma compreensão mais ampla de como as doenças se manifestam e esses novos pontos de vista permitem criar abordagens diferentes para solucionar esses problemas.

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