Transplante Hepático

Dr. Stéfano Gonçalves Jorge

Dos primórdios heroicos de Starzl e Calne na década de 70 até as estruturas extremamente organizadas e complexas dos grandes centros de transplante de hoje, percorremos um longo caminho. O transplante hepático, que era uma medida desesperada com apenas 30% de sobreviventes ao final de um ano, agora é um procedimento de rotina com mais de 90% de sobrevida em 1 ano, 77% em 5 anos e que estende a vida do receptor por uma média de 15 anos. Os números podem não parecer tão fantásticos à primeira vista, mas deve ser levado em conta que, na maioria das vezes, é realizado em portadores de doença terminal com expectativa de poucas semanas de vida.

Indicações atuais para transplante hepático na Europa (fonte)

Hoje é o tratamento utilizado como terapia definitiva em praticamente todas as doenças avançadas do fígado. Essa evolução se deve em parte a avanços no nosso conhecimento em fisiologia hepática e coagulação no paciente cirrótico, melhorias na imunossupressão, nas técnicas cirúrgicas, de retirada e de preservação do órgão e, principalmente, na melhor seleção de quando e quem deve receber um transplante.

O transplante hepático é, de certo modo, um dos procedimentos mais complexos e trabalhosos da Medicina. Com isso, não quero dizer só que a técnica cirúrgica é difícil e repleta de desafios, mas principalmente que o procedimento exige tanto dos cirurgiões quanto exige do sistema de saúde, da estrutura hospitalar, dos intensivistas, dos hepatologistas clínicos, dos hematologistas, do laboratório, da enfermagem, do serviço social e de toda a equipe. Para ter bons resultados, não basta uma ótima equipe cirúrgica, mas também um hospital bem administrado e de uma equipe multidisciplinar altamente treinada e motivada.

Basicamente, há 3 situações que indicam o transplante hepático. Há algumas doenças que indicam o transplante por si só, como algumas doenças genéticas, mas a grande maioria dos transplantes são realizados por complicações da cirrose avançada, ou por perda do funcionamento do fígado.

As situações mais emergenciais, e que entram como prioridade nas listas de transplante, são a perda aguda do fígado transplantado, por rejeição aguda e/ou trombose da artéria hepática, a perda do fígado por trauma e a insuficiência hepática aguda grave com encefalopatia hepática, independente da causa (mais frequentemente por hepatites virais agudas, hepatite autoimune ou hepatite medicamentosa).

Calculadora MELD e MELD-Na (fonte)

A segunda indicação de transplante hepático está relacionada à gravidade da doença, também independente da causa. A lógica na seleção de candidatos ao transplante hepático é prever quem tem um risco de óbito a curto prazo maior do que o risco relacionado ao transplante. Para isso usamos um método matemático que prevê a sobrevida em 3 meses, chamado de MELD (Model of End-Stage Liver Disease, ou modelo de hepatopatia terminal). Uma modificação para valorizar os paciente com hiponatremia, já que a queda do sódio no sangue está relacionada a gravidade da cirrose, é chamada de MELD-Na, que é o padrão atual para indicação do transplante hepático. Para crianças abaixo de 12 anos, usamos o PELD, que leva em conta a idade. De modo geral, indica-se o transplante hepático com MELD-Na acima de 15.

MELDMortalidade em 3 meses
40 ou mais71,3%
30-3952,6%
20-2919,6%
10-196,0%
< 91,9%
Previsão da mortalidade associada ao MELD

Uma terceira indicação é quando a perda da qualidade de vida é tão intensa que justifica a necessidade do transplante, independente do nível do MELD-Na. Algumas situações nessa categoria são o prurido intratável em doenças colestáticas (especialmente na colangite biliar primária), colangite de repetição (na colangite esclerosante primária, entre outras), a ascite refratária (quando há necessidade de paracenteses de repetição, mesmo com dieta, e tratamento medicamentoso adequado) e a encefalopatia hepática sem resposta aos tratamentos.

Além das anteriores, o transplante pode ser indicado por câncer do fígado, especialmente o hepatocarcinoma, que é uma das principais causas de transplante hepático em todo o mundo. O transplante está indicado para o câncer em fase inicial, pequeno e localizado apenas no fígado, com o objetivo de cura do câncer atual e prevenir o aparecimento de novos, pois a cirrose em si é a causa do câncer, se você trata um e a cirrose continua, a tendência é aparecer outros até que a doença não seja mais tratável. Com o transplante, o problema está resolvido.

Há algumas situações que impedem a realização do transplante. Idade, fragilidade, trombose extensa das veias porta e mesentérica, múltiplas cirurgias abdominais anteriores e história de má aderência a tratamentos anteriores tornam a indicação da cirurgia questionável, mas dependem de avaliação caso a caso. Mas há situações que contra indicam a cirurgia:

  • MELD-Na menor que 15, a não ser nas situações especiais
  • Doença cardíaca ou pulmonar avançada, a não ser que exista proposta de transplante de múltiplos órgãos
  • AIDS
  • Uso de álcool ou drogas nos últimos 6 meses
  • Hepatocarcinoma ou colangiocarcinoma perihilar com metástases
  • Sepse ou choque séptico não tratado
  • Anomalia anatômica que impeça a cirurgia
  • Colangiocarcinoma intra hepático
  • Câncer extra hepático, a não ser que esteja livre de doença há mais de 2 anos com baixo risco de recidiva
  • Hemangiosarcoma
  • Insuficiência hepática fulminante levando a aumento persistente da pressão intracraniana (HIC) acima de 50 mmHg ou pressão de perfusão cerebral (PPC) menor que 40 mmHg
  • Falta de suporte psicossocial ou doença psiquiátrica severa
  • Hipertensão pulmonar severa

Uma vez que foram avaliadas indicações e contra indicações ao transplante, é necessário uma avaliação extensa e detalhada, não apenas pelo médico hepatologista, mas também por toda a equipe multidisciplinar que avaliará se tem condições sociais de cuidar da própria saúde ou terá cuidadores para auxiliar, se tem condições nutricionais e psicológicas, etc. Algumas condições necessitam de avaliação especial antes da inclusão em lista e enquanto o receptor estiver aguardando o transplante.

A obesidade é um problema no transplante não só pela dificuldade técnica do procedimento, mas também porque pode levar a doença hepática gordurosa depois da cirurgia e está associada a menor tempo de sobrevida do enxerto. Obesidade com IMC acima de 40 kg/m2 é uma contra indicação relativa ao transplante.

Todos os candidatos devem ser submetidos a avaliação cardiológica cuidadosa, tanto relacionada à função cardíaca quanto à possibilidade de doença coronariana, que deve ser tratada antes do transplante.

Se a pessoa com necessidade de transplante tem algum parente ou conhecido saudável, de peso e altura próximos (ou seja, o fígado tem tamanho compatível) e com o mesmo tipo sanguíneo e disposto a doar parte do seu fígado (dentro de critérios éticos e legais), é possível fazer o transplante intervivos. Nesse caso, não há necessidade de lista, apenas pedir para o médico assistente encaminhar para uma equipe de transplante que faça essa cirurgia.

Mas na grande maioria dos casos há a necessidade de doador falecido, que é alguém que faleceu abruptamente, sendo a grande maioria por derrame (55%) ou por traumatismo craniano (35%) e está com morte cerebral, mas com os demais órgãos funcionando normalmente. Infelizmente, apenas 26,9% dos possíveis doadores chegam a doar órgãos, sendo que a principal causa de perda das doações é a recusa da família, que chegou a 47% em 2022 !

Deixe claro para a sua família que você é doador de órgãos. Sem a aprovação deles, outras vidas serão perdidas.

O Sistema Nacional de Transplante (SNT) no Brasil segue os regulamentos descritos na Portaria 2.600, de 21 de outubro de 2009 e tem como objetivos manter um sistema com equidade, objetividade e transparência, levando em consideração que temos uma necessidade de órgãos muito maior do que a quantidade de doações. Equidade é diferente de igualdade, isso significa que na lista de transplante as regras foram elaboradas para reconhecer as muitas situações distintas dos receptores e aplicar um sistema mais justo.

Em teoria, a lista de espera para o transplante de fígado é federal, mas cada Estado controla sua lista, com exceção do Estado de São Paulo, que tem duas listas, uma para a capital e outra para o interior.

Até 2009, as listas funcionavam como uma fila, sua posição dependia de quanto tempo estivesse no sistema. Só que algumas vezes a pessoa chegava no topo da lista e não precisava do transplante, enquanto que outras que realmente precisavam não sobreviviam até chegar a sua vez. A partir daí, a lista passou a ser separada por tipagem sanguínea e classificada por um valor numérico, sendo esse baseado no cálculo de MELD-Na. A lista também considera o tempo de espera (cada dia pontua como 0,33 vezes o número de dias de espera na lista).

No caso das situações especiais, aquelas que indicam o transplante pelos sintomas, não pela gravidade da doença, o sistema prevê uma pontuação especial. Prurido intratável (da colangite biliar primária ou de outras colestases), carcinoma hepatocelular (em fase inicial), encefalopatia hepática intratável, colangite de repetição (da colangite esclerosante primária ou outras causas), ascite refratária e outras condições são consideradas situações especiais. O transplante por hepatocarcinoma também entra dentro das situações especiais e é pontuado do mesmo modo, com o cuidado de ter que reavaliar constantemente para o tumor não se espalhar ou crescer muito, o que contraindicaria o transplante. Nesses casos, o receptor entra na lista como se tivesse um MELD de 20 (exceto na ascite refratária, que já entra como 29). Se não conseguir o transplante em 3 meses, o valor sobre para 24, e em 3 meses para 29. Em crianças até 12 anos em situações especiais, o PELD ajustado inicial é de 30, em 1 mês na lista vira 35.

Uma situação complexa que é discutida incessantemente é sobre o transplante de fígado e o consumo de álcool. A legislação brasileira especifica claramente que é necessário pelo menos 6 meses de abstinência alcoólica (absolutamente nada de álcool) para ser incluído na lista (independente se a doença do fígado foi causada pelo álcool). Isso é baseado no fato bem documentado que a recidiva de consumo de álcool após o transplante é muito maior (acima de 70%) em quem não ficou 6 meses sem antes da cirurgia. E que o consumo de álcool reduz a sobrevida do fígado transplantado. A discussão é se não deveríamos abandonar essa restrição considerando que o transtorno do abuso de álcool é uma doença e tem que ser tratada, assim como as hepatites virais e doenças autoimunes que podem retornar após o transplante. Talvez isso mude com o desenvolvimento de tratamentos mais eficazes para o alcoolismo.

O transplante de fígado é uma cirurgia complexa, de grande porte, que envolve dúzias de profissionais de diferentes áreas, incluindo cirurgiões, anestesista, instrumentador, enfermagem, intensivista, hepatologista, hematologista, patologista, fisioterapeuta, nutricionista e toda a equipe de suporte do hospital.

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